Notas & Comentários – 26-01-2018

Brasília, 26 de janeiro de 2018

Universalização e pressupostos da civilização: Vimos nas N&C da semana passada (N&C 19.1.2018) que a FCC confiou na palavra dos potenciais beneficiários do seu programa de universalização das telecomunicações, chamado Lifeline. O órgão americano equivalente ao TCU (Government Accountability Office – GAO) descobriu fraudes milionárias. Muitos índios, tribos e pobres, além de brancos e remediados, estavam mentindo, para receber os subsídios do Lifeline. O que houve? Antes não era assim. Nunca se mentiu assim, tão facilmente. Nunca pessoas se expuseram tanto assim a serem pegos na mentira. A honestidade passou a valer pouco.

A confiança é um dos pressupostos culturais de nossa civilização. Um pressuposto tácito, mas fundamental. É necessário confiança, seja entre marido e mulher, entre pais e filhos, nas relações entre empregadores e empregados, nas esferas privadas e governamentais e na vida em comunidade. É a confiança, também, que fornece um dos esteios para o desenvolvimento da economia. O livro de Alain Peyrefitte, intitulado A Sociedade da Confiança (La société de confiance. Essai sur les origines et la nature du développement. Editions Odile Jacob, 1995), mostra isso muito bem.

No fim, a própria sociedade, sob pena de mergulhar no caos indesejável, requer a existência de um substrato moral, cuja origem no ocidente é cristã, para funcionar. É desse fundo comum, é buscando nesse depósito civilizatório de séculos que se torna possível a utilização de critérios jurídicos abertos como os de razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé, bons costumes e tantos outros, repetidamente usados na linguagem jurídica ocidental.

Universalização e outros programas sociais – a palavra: No caso do engodo para o recebimento de fundos de universalização de serviços de telecom nos EUA, o que houve foi de fato uma profunda modificação nos fundamentos de nossa civilização: não há mais fundamentos morais claros, rastreáveis. Nossa herança cristã foi sendo corroída, e em seu lugar, hoje, usam-se padrões apodrecidos, sem lastro sequer na realidade.

A dissociação da realidade permitiu o tranquilo advento da desonestidade, da mentira, da fraude e do roubo como coisas quase naturais. Numa sociedade em que um homem branco pode dizer que é negro para gozar de uma quota num concurso; em que um remediado pode dizer que é pobre para receber um subsídio social; se um caucasiano pode dizer que é índio, ou se um homem pode dizer que é uma mulher e entrar no banheiro das mulheres, ou jogar num time esportivo feminino, nessa sociedade, tudo pode: é uma sociedade sem referência moral, onde a mentira necessariamente será algo corriqueiro.

Sempre houve ladrões, mentirosos e desonestos na humanidade. A diferença é que, agora, repreender mentirosos pode até ser racismo, prender ladrões pode ser perseguição política, ser contra banheiros compartilhados pode ser transfobia. A honestidade parece ter se afastado da realidade.

Breve digressão – o positivismo jurídico e a falência do valor dado à palavra: Na Idade Média, muitas heresias, querendo destruir o sistema de civilização construído pela Cristandade, afirmaram que todo e qualquer juramento era inválido ou pecaminoso. Ora, para uma sociedade fortemente baseada na palavra dada, tratava-se de algo revolucionário, profundamente perturbador, e claramente destrutivo. Muitas vezes podemos pensar que somos avançados porque temos leis escritas, ou constituições escritas. É claro que elas servem a um bom propósito no dia de hoje (se forem justas…), mas a realidade é que são também um sinal claro de nossa falência moral, pois não mais se acredita na mera palavra empenhada. Veja-se que, em uma relação de confiança, como, p. ex., a familiar, entre pai e filho, não há uma constituição interna escrita; tudo se baseia na palavra.

O Precedente da Era Roosevelt: Todo programa de subsídio – e muitas vezes são necessários – torna-se um convite à fraude e à corrupção. Uma porta aberta para os desonestos. Roosevelt, para coibir a superprodução agrícola americana adotou um programa de subsídio ao agricultor americano – o Agriculture Adjustment Law, de 1933. O agricultor deveria deixar de plantar, para aumentar o preço de seus produtos a “valores justos”, valores de 20 anos antes, dos anos 1909-1914. O governo incentivou a venda de porcas prenhes e de porquinhos para o abate. Muita laranja foi incendiada com querosene, muito milho usado como combustível. Isso, enquanto muita gente morria de fome.

Entre os produtos escolhidos para não plantar nem criar – e merecedores de subsídios – estavam o trigo, o algodão, o milho, a suinocultura, o arroz e o tabaco. A eles foram, logo, acrescentados – via lobby – centeio, linho, cevada, soja, gado, amendoim, cana de açúcar, e batatas… Claro, todo mundo quer ser candidato a receber um bom subsídio.

Só que o agricultor recebia o subsídio e… plantava. O Governo contratou fiscais para checar se quem recebia subsídio realmente deixava de plantar. O agricultor usou parte do subsídio recebido, que era para não plantar, não apenas para continuar plantando, mas também para… subornar os fiscais…

A instrumentalização dos índios pela ideologia: Não é de hoje que a defesa da causa do “bom selvagem” é estratégia de grupos e pessoas que, longe de procurarem o bem real dos nativos, servem- se deles como instrumento útil ao triunfo de sua ideologia. Pegue-se, por exemplo, o caso das reduções guaraníticas no Paraguai, séc. XVIII, demonizadas por “escravizar” os índios, retirar-lhes a liberdade supostamente cara ao ideal iluminista: nada mais longe da realidade, pois nelas, o que realmente ocorria, era a inserção dos índios na civilização ocidental, com estudo da gramática, línguas, pintura, arquitetura, comércio e religião.

Mas o ataque foi intenso e a expulsão dos Jesuítas da Espanha e colônias espanholas, com o Tratado de Madri de 1750, terminou por destruir as reduções guaranis.

Uma visão ideologizada dos índios também ajudou na formação da mentalidade revolucionária do século XVIII, como o demonstrou Afonso Arinos de Mello Franco no seu livro “O índio brasileiro e a Revolução Francesa”, como mencionamos nas N&C de 19.1.18. A tese do livro é, sumariamente, de que os relatos que chegavam na França vindos do Brasil sobre os indígenas foram fundamentais para moldar o mito do bom selvagem e da bondade essencial do homem em estado de natureza; esse estado de natureza foi corrompido quando o homem passou a viver em sociedade, e seria necessário um novo pacto social, um novo contrato social, que seria o fundamento formal da sociedade, de onde se derivava toda a autoridade, para reformá-lo. Muitos contestam até que ponto o “índio brasileiro” realmente influenciou a revolução francesa, mas que houve influência é difícil negar, ainda que as vias de influência sejam fantasiosas.

Em outras palavras, Afonso Arinos é genial, seu livro é uma delícia, mas o índio não era um bom selvagem.

Boston Tea Party e os índios mohawks: A East India Company estava esmagada por dívidas, em estado, diríamos hoje, pré- falimentar, precisando de um Chapter 11, de um processo de Recuperação Judicial. O governo real britânico decide, em 1773, deixar somente a ela, East India Co., os direitos de exportação do chá, permitindo que ela o fizesse também diretamente aos consumidores finais, sem intermediários na cadeia de comercialização. Isso exaltou enormemente os comerciantes de chá da cidade de Boston. Em solidariedade com as perdas financeiras dos comerciantes, o povo de Boston, cansado da opressão exercida pela coroa na colônia, invadiu o navio Dartmouth, atirou seu estoque de chá para fora e desafiou o rei, George III, a interromper sua “tea party”. Esse foi um momento central no caminho para a independência dos EUA, firmando a insatisfação popular contra o governo central.

Há só um problema nessa narrativa: ela é falsa. E não é difícil compreender por que: como é que o povo iria se revoltar com a queda no preço do chá (devido à ausência dos intermediários)? Nenhum negociante de chá sensato aplaudiu a destruição de 18 mil pounds de chá; Benjamim Franklin pediu a justa punição contra os que cometeram essa violência; John Adams receava que esse tipo de baderna iria deixar a população insolente; na verdade, a reação foi tão grande que poderia o governo britânico, se mais habilidoso, ter utilizado o episódio a seu favor e buscar uma reconciliação e, no extremo, quem sabe, até mesmo retardar a independência americana.

O que houve, então? O que houve foi um espetáculo teatral, que terminou deturpando e glorificando, em favor de determinada posição, um ato que todos reputaram injusto. Samuel Adams tinha o gênio de um agitador profissional; quem, na noite de Boston, visse uma vela a bruxulear na madrugada, dizia: “Lá está Samuel Adams a escrever contra os tories”. De uma espécie de comício que ele fez perto do cais nesse dia do Boston Tea Party, e depois de muito ponche distribuído entre os ouvintes, os ânimos ficaram exaltadíssimos.

As descrições da época afirmam que índios mohawks, com seus cocares de penas coloridas, invadiram o Dartmouth: mas não eram índios de verdade; apenas baderneiros disfarçados de índios.

A fantasiosa ideia da destruição de chá dos exploradores reais ganhou nosso imaginário e venceu a narrativa. Ajudada, sem dúvida, pela teatralidade da inocente e ingênua participação indígena.