Notas & Comentários – 03-06-2022

Um Jantar que mudaria a história: Benedetto Castelli, um monge beneditino, era professor de Matemática na Universidade de Pisa, por indicação de seu mestre, Galileu. Corria o ano de 1613 quando Castelli foi convidado para um jantar que mudaria a história. Estavam presentes o próprio Grão-duque da Toscana, Cosimo II, sua mãe, a Grã-duquesa Cristina de Lorena, e sua esposa, Madalena de Áustria. Madalena era uma Arquiduquesa de Áustria, e manteve esse título, por ser superior ao de Grã-duquesa da Toscana. Por isso, era lícito continuar a tratar Cristina como Grã-duquesa.

Castelli havia já deixado o jantar, quando foi alcançado, na rua, por um empregado da Grã-duquesa Cristina, que pedia que ele retornasse ao palácio. É o próprio Castelli quem conta tudo, em carta a Galileu. Durante o jantar, um certo Dr. Boscaglia, professor de Filosofia da Universidade de Pisa, disse considerar o movimento da Terra absurdo, sendo um fenômeno claramente contrário às Escrituras. Boscaglia podia concordar com outras teses de Galileu, menos esta. Castelli explicou tudo aparentemente a contento. A Arquiduquesa parecia satisfeita. Boscaglia não disse mais nada; e, como se seu único papel na História fosse provocar o imenso ego de Galileu, nunca mais se ouviu falar de Boscaglia na História.

Fim da questão, certo? Não. Não para Galileu Galilei.

Da Carta a Castelli à Carta à Grã-Duquesa Christina: Sim, isso deveria ser o fim da questão. Alguém defendeu uma tese, outro, uma antítese, e pronto. Mas não com alguém como Galileu Galilei. Sua entrada no tema, expressa muito bem Koestler, ‘se tornou uma espécie de bomba teológica cujos efeitos radioativos são sentidos até os dias de hoje’.

Inicialmente, a reação de Galileu tomou a forma de uma Carta a Castelli, datada de 21 de dezembro de 1613, a qual foi amplamente difundida, como era a intenção, e gerou muitas reações. Mais de um ano depois, com o assunto sempre fervilhando em sua cabeça, Galileu estendeu e aperfeiçoou a Carta a Castelli, na forma de uma Carta à Grã-Duquesa Christina, a qual entrou para a história. Era uma Carta de mais de 30 páginas escrita em maio de 1615, e então amplamente divulgada em forma manuscrita, mas só foi impressa 21 anos mais tarde, em 1636. A ousada intenção de Galileu era silenciar a objeção teológica ao sistema de Copérnico.

O objetivo da Carta à Arquiduquesa Cristina: Ou seja, Galileu queria derrotar os defensores da Física de Aristóteles não apenas no campo dos fatos da física em si, mas também no campo da Teologia. Galileu, sem formação alguma em Teologia, quis ensinar aos teólogos qual deveria ser a interpretação da Bíblia, assim, sem a devida circunspecção, sem considerar os mil e quinhentos anos de uma exegese que passara pelos grandes doutores da Igreja, pelos Padre da Igreja, por São Bernardo, Santo Anselmo, São Tomás de Aquino e tantos vultos geniais e santos.

A posição de Galileu é interessante, como tudo dele; contém elementos corretos, mas, francamente, é muita pretensão um leigo, sem formação teológica adequada, quase que en passant, querer mudar a exegese bíblica vis-à-vis da ciência. Mas Galileu não se detém diante de pouca coisa.
Assim, Galileu começou sentenciando que algumas afirmações da Bíblia não deveriam ser tomadas literalmente, pois foram escritas “pensando na capacidade de compreensão das pessoas comuns, que são rudes e sem erudição”. Para nós leigos, principalmente leigos de hoje, parece razoável, mas… de onde Galileu tirou isso?

Galileu delineando o alcance da Teologia: Galileu, pois, estava entrando numa esfera distinta, em que havia um conhecimento acumulado, vivo e contínuo de séculos, muitas pessoas havendo dedicado uma vida inteira de estudo e meditação ao tema. Desde São Justino Mártir, ainda na época do Imperador Trajano, passando por Santo Atanásio de Alexandria, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo, Santo Isidoro de Sevilha, e tantas pessoas não apenas geniais, mas grandes santos, como mencionei acima. Parece muita presunção.

Na Carta à Grã-duquesa Cristina (traduzida por Stillman Drake, apud Arthur Koestler) Galileu faz digressões sobre o escopo da Teologia, afirmando que ela é a Rainha das Ciências não porque contém, nela, as demais ciências, mas por tratar do mais elevado dos temas: de Deus e das coisas de Deus. Assim, prossegue Galileu, ‘nenhum teólogo versado em outras ciências diria que geometria, astronomia, música e medicina são explicadas de forma mais excelente na Bíblia do que nos livros de Arquimedes, Ptolomeu, Boécio e Galeno’. Sim, mas…

Galileu, respeitosamente, diz que a Bíblia não precisa se rebaixar ao nível das outras ciências subordinadas, onde existem as especulações, as hipóteses, os modelos matemáticos. ‘O professor de Teologia não deve se arrogar o direito de decidir sobre controvérsias sobre as quais não estudou nem praticou’. (Mas o filósofo natural Galileu pode decidir sobre controvérsias da Teologia, que ele não estudou nem praticou…). ‘É como se um déspota, não sendo nem médico nem arquiteto, começasse a prescrever remédios e construir prédios segundo sua fantasia, com grave perigo para seus pobres pacientes e o rápido desmoronamento dos seus edifícios’.

Galileu em busca de inimigos: Os Jesuítas, os maiores cientistas da Igreja na época, corroboraram as descobertas de Galileu sobre a imperfeição da superfície da Lua, os Satélites de Júpiter, as Fases de Vênus. Concordavam que Vênus orbitava em torno do Sol, e não da Terra, esfacelando, logo, o Sistema Geocêntrico de Ptolomeu. Assim, os jesuítas abandonaram Ptolomeu e perfilharam o Sistema de Tycho Brahe, em que os Planetas giram em torno de Sol, e o conjunto Sol + Planetas gira em torno da Terra. Com Tycho Brahe, cujo Sistema também dava resultados corretos, estava prudentemente mantida a interpretação tradicional das Sagradas Escrituras, pelo menos até uma prova definitiva de que a Terra também fazia revoluções em torno do Sol e rotações em torno de seu próprio eixo.

Mas tudo isso era pouco para Galileu. Galileu adentrou a Sacristia. Não discretamente, não falando baixinho, mas ruidosamente.

Koestler, cuja prosa é límpida e agradável, faz uma imagem muita palpável acerca dessa incursão de Galileu sobre a Teologia. Diz que ‘Galileu começa a caminhar pisando numa fina camada de gelo e que, logo, se pôde ouvir o gelo trincando sob seus pés’…