Notas & Comentários – 17-06-2022

Galileu aristotélico? É muito curioso perceber que Galileu, o anti-aristotélico por excelência, seguia profundamente imbuído de Aristóteles. Sim, estava desconstruindo a física aristotélica e, para isso, seria capaz de reparar, renunciar, reconstruir tudo que parecesse empecilho às suas (de Galileu) teses, mas mantinha as ideias de perfeição das órbitas próprias de Aristóteles. Em outras palavras, Galileu achava que as órbitas tinham de ser, necessariamente, circulares. Jamais elípticas.

Vamos relembrar: Galileu estava começando a defender publicamente o Sistema Heliocêntrico, mas não aquele com as modernas e precisas Leis de Kepler já conhecidas, inclusive com as órbitas elípticas. Galileu defendia o Sistema Solar de Copérnico, com todas as órbitas rigorosamente – e aristotelicamente – circulares, com todos aqueles ciclos e epiciclos, não como hipóteses, mas como se estes fossem reais. Como é que pode? Como isso passou no crivo genial de Galileu? Na verdade, o anti-aristotélico Galileu nunca conseguiu se desvencilhar totalmente do aristotelismo: morreria apegado à perfeição das órbitas circulares.

A Carta e as Teses: Na Carta à Grã-Duquesa Christina, Galileu avança, de várias maneiras, sobre a Teologia. Diz, p. ex., que as contradições que alguns afirmam existir entre as Sagradas Escrituras e a doutrina de Copérnico provêm de uma interpretação errônea de passagens bíblicas no sentido literal. Diz que a Bíblia foi redigida para ser compreendida pelo povo comum, não podendo, pois, apresentar raciocínios abstratos próprios da ciência.

E prossegue Galileu: o fato de que os Padres da Igreja estejam de acordo sobre uma interpretação da Bíblia não constitui prova suficiente de sua exatidão. Ai, ai.

Galileu sabia onde estava pisando: “Meus adversários, não podendo me confundir no domínio filosófico, tentam me confundir usando o manto de uma falsa religião…”. Logo, Galileu tenta ensinar a seus adversários como interpretar a Bíblia.

Galileu – um fiel católico: Galileu queria mostrar que ele podia ser, ao mesmo tempo, um astrônomo sábio e um bom católico. Alguns autores não concordam com essa afirmação; alguns acham até que Galileu era pouco católico ou até que não era católico. Parece-nos razoável crer que era, sim, um bom católico. Pode mesmo ser que Galileu tenha pensado em evitar que a Igreja passasse um vexame científico, ao manter uma interpretação da Bíblia que cada vez mais parecia ser desautorizada pela ciência. Mas todo o problema se resumia à falta de uma prova: se fosse apresentada uma prova dos movimentos da Terra, a Igreja alteraria a interpretação das Sagradas Escrituras. A Igreja sempre afirmou esse pensamento, como, aliás, reafirmaria, em pouco tempo, o grande São Roberto Belarmino, quando provocado sobre a matéria. Como, entretanto, não havia prova, a Igreja mantinha sua interpretação tradicional.

Não apenas não havia prova, como as tentativas de prova falharam rotundamente: a teoria das marés, que Galileu cultivaria até a morte para provar os movimentos da Terra, era errônea; não eram os movimentos da Terra, mas a atração da Lua que causava as marés; e isso já se sabia. Além de tudo, não havia paralaxe. Se a terra fizesse revoluções em torno do Sol, haveria paralaxe, ou seja, o ângulo de visada para as estrelas variaria, dependendo do lugar em que a Terra estivesse, em sua trajetória em torno do sol: mas não variava. Mesmo com a ajuda de telescópios cada vez melhores, não se conseguia observar paralaxe.

O Heliocentrismo de Galileu: O óbvio problema, porém, pelo qual ele cruzou o Rubicão, é que Galileu propunha o Sistema Copernicano em termos absolutos, não apenas como hipótese. E aí, não apenas nunca apresentou provas, como ele estava equivocado.

Assim, Galileu apoiava claramente o heliocentrismo, mas não como concebido por Kepler, com órbitas elípticas, mas como proposto por Copérnico, com aqueles mais de quarenta ciclos e epiciclos. Mais grave, Galileu defendia o heliocentrismo copernicano como uma realidade, ainda que quase todas as aparências contrariassem essa hipótese. P. ex., não havia nenhuma prova de que os planetas descreviam realmente aqueles ciclos e epiciclos, os quais soavam como uma estranha impossibilidade física (ainda que funcionassem como modelo matemático); ninguém percebera nenhuma paralaxe. As fases de Vênus, claro, implicavam que pelo menos este planeta revolvia em torno do Sol e não da Terra, o que desqualificava fisicamente o sistema de Ptolomeu (mas não seu modelo matemático, que continuava dando resultados corretos). O sistema de Tycho Brahe, entretanto, se mantinha para esse fenômeno de Vênus.

O – muito – que restou em Galileu de aristotélico o impedia de aderir ao sistema de Kepler, límpido, sem epiciclos, sem equantes, sem deferentes, sem excêntricos.

O Milagre de Josué – segundo Galileu: A parte final da Carta à Grã-duquesa Cristina trata do Milagre de Josué. E começa, de forma bem peculiar, afirmando que a rotação do Sol em torno de seu eixo é a causa da rotação de todos os planetas. Galileu parte da seguinte observação: ‘assim como se o movimento do coração cessar em um animal, todos os demais movimentos dos seus membros também cessam, da mesma forma, se a rotação do Sol cessar, a rotação de todos os planetas também cessaria’. Puxa. Como assim? Baseado em quê?

Galileu conclui que, quando Josué mandou o Sol parar, o Sol parou seu movimento de rotação e, em consequência, a Terra deixou de girar em torno de seu próprio eixo e estancou seu movimento de translação em torno do Sol. Opa. Aqui surge um problema, e um problema numa área em que Galileu seria pioneiro: a Inércia.

Galileu ignora a Inércia? É estranho. Galileu, que chegou tão perto de descobrir a Lei da Inércia, certamente sabia que, se a Terra parasse subitamente seus movimentos, as cidades e as montanhas voariam, se precipitariam no ar, no espaço.

Assim, com essa teoria de Galileu para o Milagre de Josué, não apenas seriam destruídos os filisteus, mas a Terra inteira. Se, porém, o Milagre de Josué fosse interpretado segundo o Sistema de Ptolomeu, nada aconteceria com a Terra, pois era o Sol que parava.

Na Carta à Grã-duquesa Cristina, Galileu mostra seu gênio como grande prosador, como refinado defensor da liberdade de pensamento científico, mas deixa a desejar justamente no rigor científico.