Caros,
Assim, a astronomia e a teologia conviviam em paz, fazia mais de mil e quinhentos anos. O impaciente ego de Galileu introduziu o conflito. Nunca um gênio cometeu tantos erros de maneira tão brilhante como Galileu. Seus erros soavam verdadeiros no charme de sua escrita.
O Sistema de Galileu era o Sistema de Copérnico, tal qual, sem tirar nem pôr, com toda a implausibilidade física de seus 48 epiciclos. Kepler já tinha mostrado que a trajetória dos planetas em torno do Sol eram elipses, não círculos. Mas Galileu – um bom aristotélico… – se manteve na crença de que as órbitas eram círculos perfeitos.
E, como Galileu, com toda sua autoridade, afirmava a realidade dessas coisas, mesmo sem provas (a prova viria apenas dois séculos após a morte de Galileu), a Igreja achou prudente esperar as provas e, entrementes, manter as interpretações bíblicas tal qual sempre foram. Os luteranos fizeram a mesma coisa e excomungaram o devoto Kepler.
Assim, pela confusão que se disseminava, três meses após todas as acusações contra Galileu perante a Inquisição terem sido arquivadas, o Livro de Copérnico, o esquecido De Revolutionibus Orbium Coelestium, foi posto no Index, pendente de correções. Entra Belarmino.
Bem, Galileu pediu para que mostrassem uma cópia de sua Carta a Castelli ao Cardeal Belarmino. Como assim? Galileu, sem provas a favor do sistema de Copérnico, apenas com provas contra o sistema de Ptolomeu, Galileu, desautorizando a interpretação dos padres da Igreja, pede para mostrarem suas teses ao Cardeal Inquisidor de Roma?
Da mera hipótese à realidade? Assim, a astronomia e a teologia conviviam em paz, há um milênio e meio. O ego de Galileu introduziu o conflito.
Nem doutos religiosos estavam preocupados com Copérnico, ou com o sistema dele. Frei Lorini nem sabia soletrar o nome do cônego polonês, chamando-o de Ipernicus. Mas a Carta a Castelli e a Carta à Grã-Duquesa Cristina chamaram a atenção para um problema que não existia, salvo pela insistência de Galileu. Era uma daquelas situações trágicas em que os dois lados, de boa-fé, acham que está tudo bem, mas um lado dá alguns passos, ainda de boa-fé, achando que continua tudo obviamente correto. Mas, não. Parecia que Galileu estava desafiando – sem provas – a autoridade da Igreja em coisas fundamentais.
É bem ilustrativo, nesse momento, que o bispo de Fiesole quisesse que Copérnico fosse preso de imediato, e ficou surpreso quando soube que Copérnico morrera fazia já 70 anos… É que ninguém dava a menor bola para Copérnico e seu livro.
Afinal, qual o Sistema Cósmico de Galileu? Nunca um gênio cometeu tantos erros de maneira tão brilhante como Galileu. Seus erros soavam verdadeiros no charme de sua escrita. Aliás, contrário ao costume da época, Galileu escreveu alguns de seus livros em italiano, não em latim, para atingir um maior número de leitores. Galileu era uma estrela, digo, uma superstar. O Sistema de Galileu era o Sistema de Copérnico, tal qual, sem tirar nem pôr, com toda a implausibilidade física de seus 48 epiciclos. Kepler, em seu modelo, já tinha mostrado que a trajetória dos planetas em torno do Sol eram meras elipses, não círculos. Os movimentos planetários podiam ser, então, explicados de maneira muito simples, inclusive a retrogradação de seus movimentos, sem nenhum epiciclo, uma trivial geometria. Mas Galileu – no fundo um bom e velho aristotélico – se manteve dogmático na crença de que as órbitas eram círculos, tinham de ser círculos. Como, elipses?!
Primeiro, Galileu foi prudente. Durante 50 anos não expressara sua opinião sobre o sistema de Copérnico. Mas quando expressou, não iria mudar para acomodar as novidades de Kepler. Galileu? Jamais. Se Galileu afirmou que Copérnico estava certo, Copérnico certo estava. Nada de emendas ao sistema copernicano. E afirmou, mais, que o sistema copernicano não era apenas um modelo, era coisa real, era daquele jeito que os astros se se transladavam e giravam…
Como Galileu, com toda sua autoridade, afirmava a realidade dessas coisas, mesmo sem provas (a prova viria apenas dois séculos após a morte de Galileu), a Igreja achou prudente esperar as provas e, entrementes, reafirmar as interpretações bíblicas tal qual sempre foram.
Galileu instrumentalizado: Em suma, Galileu, um gênio, tinha muitos indícios para afirmar que a Terra girava em torno do Sol, como, de fato, gira. Gira, porém, não como Copérnico teorizou, mas como Kepler estabeleceu. Galileu foi erigido em mártir da ciência, sem ter sido mártir, sem ter provado o movimento da Terra em torno do Sol, e tendo errado na forma desse movimento, que se dava segundo Kepler (elipses), não segundo Copérnico (círculos). Aliás, nessa época, Kepler, que viveu e morreu como bom luterano, foi excomungado pela sua igreja, e é possível que a acusação de bruxaria contra sua mãe tenha sido parte de um ataque concertado contra ele pelo luteranismo. Copérnico nunca foi incomodado e todas as acusações contra Galileu haviam sido arquivadas pela Inquisição..
Mas, tendo a Igreja se tornado o alvo, o inimigo a desmoralizar e destruir, “l’infâme” no dizer de Voltaire, valia tudo. Foram colocadas palavras heróicas na boca de Galileu, sem que ele nunca as tivesse proferido, como “Eppur si muove”. O importante era ridicularizar a Igreja. Galileu, um bom católico, foi um instrumento dessa campanha difamatória contra a Igreja, para retratá-la como ignorante, obscura, atrasada, ela que criara as universidades; que, após a devastação das migrações e invasões bárbaras, mantivera largamente o conhecimento dos clássicos nos monastérios, em especial na Irlanda; ela que promoveu, sozinha, o desenvolvimento da ciência a um ponto que nem os antigos alcançaram. Vale a pena dar uma olhada nessas referências:
– Thomas Cahill. How the Irish Saved Civilization: The Untold Story of Ireland’s Heroic Role from the Fall of Rome to Rise of Medieval Europe. Ancho Books, 1996.
– Charles Homer Haskins. The Rise of Universities. Cornell University Press, 1965.
– R. W. Southern. The Making of the Middle Ages. Yale University Press, 1953. [livro de tremenda erudição, mas agradável leitura].
– Frances & Joseph Gies. Cathedral, Forge, and Waterwheel: Technology and Invention in the Middle Ages. Harper Collins, 2010.
– Lynn White, jr. Medieval Religion and Technology. University
of California Press, 1986. [livro genial, espetacular e delicioso].
Belarmino e a Tradição: Eis que, três meses após todas as acusações contra Galileu perante a Inquisição terem sido arquivadas, o livro de Copérnico, o esquecido e adormecido, o, por assim dizer, worstseller de Copérnico, o De Revolutionibus Orbium Coelestium, foi posto no Index, pendente de correções. Entra Belarmino.
São Roberto Belarmino foi uma dessas inteligências fulgurantes que iluminaram a Terra, como Aristóteles, Arquimedes, São Bernardo, São Tomás de Aquino e poucos outros dessa magnitude. Um grande teólogo, intimorato de reis e de outras autoridades civis ou religiosas, temente apenas a Deus, o cardeal Belarmino fora professor de astronomia quando jovem. Amante da música e das
artes, levava uma vida simples, ascética. O maior e mais feroz inimigo de Belarmino, o rei da Inglaterra, Jaime I, em seus últimos dias de vida, costumava andar com um livro do cardeal intitulado De gemitu columbae (O lamento da pomba), que ele, Jaime I, considerava um maravilhoso auxílio para conforto espiritual.
Bem, Galileu enviou uma cópia da Carta a Castelli ao Padre Grienberger, famoso professor de Matemática do Collegio Romano, repositório do saber científico dos Jesuítas, a ordem que mais cultivava a ciência naquela época. E pediu que a mostrassem também ao cardeal Belarmino. Para que eles vissem uma versão autêntica e não com possíveis alterações maldosas da Carta.
Como assim? Galileu, sem provas a favor do sistema de Copérnico, apenas com provas contra o sistema de Ptolomeu, pede para mostrarem suas teses ao Cardeal Inquisidor em Roma?