Caros,
Roberto Belarmino estabeleceu que a Igreja pode alterar uma interpretação das Sagradas Escrituras, mesmo uma mantida por mais de mil e quinhentos anos, sobre um fenômeno natural, mas que, para isso, era necessário prova física. Indícios, intuição e aparências, apenas, não eram o bastante. Resumidamente, eis a doutrina Belarmino:
- a ciência estabeleceu e manteve durante séculos a Terra no centro do universo;
- existe um entendimento das Escrituras compatível, há muitos séculos, com as observações científicas;
- a Terra imóvel no centro do universo é compatível com a experiência cotidiana;
- como modelo matemático, não havia nenhum problema em supor que o Sol é o centro do Universo e que a Terra se move em torno do Sol, e gira em torno de seu próprio eixo;
- para a Igreja mudar sua interpretação das Sagradas Escrituras nesse aspecto é necessária uma prova;
- não havia prova, nem houve nos próximos 235 anos. Quando Galileu, quinze anos depois, apresentou uma, era errônea, e foi imediatamente rechaçada pela comunidade científica…
Assim, pode-se deduzir que Galileu desistiu de defender sua intuição, deixou de insistir que o sistema de Copérnico era uma realidade (o que nunca foi), certo? Nada. O orgulho dele não deixou.
Belarmino esclarece a doutrina: O Cardeal-inquisidor Roberto Belarmino, após reafirmar a posição tradicional da Igreja, expressa como uma tal posição pode ser alterada. É preciso muita autoridade para dizer isso, e dizer de forma tão clara. Com a humildade e a firmeza de uma mente privilegiada.
Sim, nessa época, um religioso, Paolo Antonio Foscarini, provincial dos carmelitas em Nápoles, escreveu um livro defendendo o sistema heliocêntrico de Copérnico e (agora) também de Galileu. Enviou uma cópia do livro a Belarmino, o cardeal-inquisidor. Estava tão convencido da correção de suas ideias que se ofereceu para um debate público com quem quisesse… Em 4 de abril de 1615, Belarmino escreveu uma carta ao padre Foscarini, em que definia sua posição, ou seja, praticamente a posição da Igreja. A carta era de um bom senso irretocável, de uma clareza cristalina, e dava o caminho que a Igreja seguiria, inclusive para o caso de mudança de visão da Igreja sobre o tema. Dizia a carta:
“Primeiro, parece-me que V. Revma. e o Signor Galileu agem prudentemente quando se contentam em falar hipoteticamente e não em termos absolutos, como eu sempre entendi que Copérnico falou. Dizer que a hipótese de que a Terra se move e que o Sol permanece imóvel salva todas as aparências celestes melhor do que usando excêntricas e epiciclos é falar com excelente bom senso, e não corre nenhum risco. Tal maneira de falar é suficiente para um matemático. Dizer, porém, que o Sol está verdadeiramente no centro do Universo e que só gira em torno de seu próprio eixo, e que a Terra está situada na terceira esfera e se desloca rapidamente em torno do Sol, é uma atitude perigosa…”
“Segundo, eu digo, como V. Revma. sabe, que o Concílio de Trento proíbe a interpretação das Escrituras de modo contrário ao comum entendimento dos Padres da Igreja.”
Salvo se…
Belarmino põe o ônus da prova em seu devido lugar: Prossegue o cardeal Belarmino:
“Terceiro, eu digo que, se houvesse uma prova real de que o Sol é o centro do Universo, que a Terra se encontra na terceira esfera [i.e., depois das esferas de Mercúrio e Vênus, os dois planetas interiores], e que o Sol não se desloca em torno da Terra, mas a Terra em torno do Sol, então devemos prosseguir com grande circunspecção para explicar as passagens da Sagrada Escritura que parecem ensinar o contrário. Deveríamos dizer que não as entendemos, pois não se pode declarar como falsa uma opinião provada como verdadeira. Mas não creio que que exista uma tal prova, pois nenhuma me foi mostrada. […] E em caso de dúvida, não se pode abandonar o entendimento das Sagradas Escrituras tal como foi exposto pelos padres da Igreja.”
Ou seja, Belarmino alteraria a visão da Igreja, mas era necessário prova. O ônus da prova não cabia à Igreja, ao contrário daquilo que Galileu propusera na Carta à Grã-Duquesa Cristina. Dificilmente algo poderia ser mais razoável do que isso.
O Caminho da mudança: Belarmino estabeleceu, pois, que, para a Igreja alterar uma interpretação, mantida por mais de mil e quinhentos anos, das Sagradas Escrituras sobre um fenômeno natural, era necessário prova física. Indícios e aparências, apenas, não eram o bastante. Resumidamente, eis a doutrina Belarmino:
- a ciência estabeleceu e manteve durante séculos a Terra no centro do universo;
- existe um entendimento das Escrituras, compatível com as observações científicas ao longo dos séculos;
- a Terra imóvel no centro do universo é compatível com a experiência cotidiana, pois não sentimos seu movimento, e vemos o Sol nascer e se pôr todo dia;
- como modelo matemático, não havia nenhum problema em supor que o Sol é o centro do Universo e que a Terra se move em torno do Sol, e gira em torno de seu próprio eixo. Isso é o que se chama um modelo matemático, que explica fenômenos, mas não representa necessariamente a realidade;
- para a Igreja mudar sua interpretação das Sagradas Escrituras, nesse aspecto, é necessária uma prova;
- não havia prova, nem houve nos próximos 235 anos. Quando Galileu, quinze anos depois, apresentou uma, era errônea, e foi imediatamente rechaçada pela comunidade científica…
Mas… o orgulho: Galileu aceitaria, como Copérnico aceitara, que o Sol no centro do mundo era apenas uma teoria, uma hipótese matemática, um modelo? Galileu, que afirmara, após décadas de silêncio ensinando o Sistema Ptolomaico, que o Sistema Copernicano era real e não apenas um modelo para salvar as aparências?
Galileu, um dos mais orgulhosos cientistas que já houve, ciosíssimo de sua reputação, não podia aceitar isso. Seria equivalente a reconhecer que ele não tinha prova do que afirmava, que ele errara ao sustentar a realidade do heliocentrismo copernicano. É claro que a intuição de Galileu sobre quem gira em torno de quem estava certa, mas ele não tinha prova. Ou… tinha? Galileu achava que tinha, achava que os movimentos da Terra (translação + rotação) explicariam as marés, passou anos trabalhando nessa prova, mas eis que a prova era… falsa.
Que situação. A fina intuição de Galileu sentia que o heliocentrismo era plausível como realidade, até porque o sistema de Ptolomeu tornara-se comprovadamente errado. Claro, o sistema de Tycho Brahe permanecia plausível, funcionava e não havia prova contra ele. Havia prova contra o sistema de Ptolomeu, mas não havia prova que validasse o sistema de Copérnico. Sua perdição foi seu orgulho extremado, pela qual, com um livro publicado 15 anos depois, Galileu ridicularizou um amigo e grande admirador dele, o Papa Urbano VIII… O orgulho não tem amigos, e destrói os amigos que porventura tenha.
Eis que Galileu, com imensurável autoconfiança, vai a Roma. Se o ouvirem, ele explica tudo, destrói toda oposição… Será? Veremos.