Caros,
A Anatel foi umas das primeiras agências reguladoras do Brasil, e constitui um tremendo sucesso, atraindo e mantendo os investimentos necessários ao desenvolvimento das nossas telecomunicações. Conta hoje com um corpo técnico maduro e competente de funcionários concursados.
Mas, como as demais agências, a Anatel parece que tem um problema de nascença: a Lei Geral de Telecomunicações estabelece que ela é “caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira”. São prerrogativas básicas de órgão regulador de todo país civilizado. Mas alguns parlamentares acham ruim e estão propondo uma emenda que, na prática, liquida o sistema de agências reguladoras.
Sim, a Emenda Aditiva 54 à Medida Provisória nº 1.154/2023 destrói, com um simples peteleco, as agências reguladoras no Brasil, e nos atira de volta ao caos da incerteza econômica, da insegurança jurídica, das veleidades políticas, do voluntarismo partidário. É inacreditável.
Consumidores, prestadores, investidores, fabricantes, associações de todo o Brasil, uni-vos.
A entropia da destruição: A lei da termodinâmica estabelece que a desorganização é a tendência natural das coisas, salvo quando se emprega energia para organizá-las, ou para impedir o caos. Por isso, diz-se que uma bomba destrói as paredes de uma casa, espalhando estilhaços de tijolos pelo chão, mas outra bomba com a mesma potência não repõe os tijolos na parede. A reconstrução demanda o emprego de uma energia muito maior. E mais: demanda inteligência.
As instituições humanas, deixadas a si, sem o emprego de energia continuada para mantê-las, tendem à desordem, como as coisas. É mister um esforço consciente para mantê-las ordenadas ao bem.
A Construção das Agências Reguladoras: Nos anos 1990, o Brasil estava no fundo do poço, junto com sua credibilidade. O poço era fundo e a infraestrutura jazia em frangalhos. As necessidades de investimento iam muitíssimo além da capacidade do Estado. Era preciso mudar tudo. Surgiram as Agências; a visão era que as elas teriam técnicos especializados para os grandes temas a regular.
Deu certo. Não faltou mais luz, nem telefone, nem outros itens do dia-a-dia de um país civilizado. Em particular, desapareceram as listas de espera para pagar – antecipadamente – por um telefone que seria entregue dois anos depois, numa hipótese otimista. O telefone fixo, quem diria, era um bem declarado no imposto de renda, precioso pela raridade. Claro, problemas houve. Sempre existirão. Mas o sucesso do modelo de agências é inegável.
Entra a Anatel: A Anatel foi umas das primeiras agências reguladoras do Brasil, e constituiu um tremendo sucesso, atraindo e mantendo os investimentos necessários ao desenvolvimento das nossas telecomunicações. Conta hoje com um excepcional corpo técnico maduro, competente e dedicado de funcionários.
Tive a honra trabalhar no desenho dessa Agência, contratado a mando do Ministro Sergio Motta (Serjão). Com muitos altos e alguns baixos, a Anatel disse a que veio, com brio. Nenhum escândalo manchou sua reputação, o que a distingue dos ministérios, submersos, estes, de vez em quando, sob acusações vexaminosas.
A construção da Anatel e de todo o marco regulatório foi lenta, cuidadosa, minuciosa. O brilho de um Carlos Ari Sundfeld e de um Floriano Azevedo Marques permanece impresso nos 216 artigos da Lei Geral de Telecomunicações – LGT. A Exposição de Motivos da LGT constitui, ainda hoje, um compêndio para os não iniciados.
Pois bem, tudo isso, esse legado de êxitos, está a perigo.
A destruição das Agências: A Emenda Aditiva 54 à Medida Provisória nº 1.154/2023 destrói, com um simples peteleco, as agências reguladoras no Brasil, e nos atira de volta ao caos da incerteza econômica, da insegurança jurídica, das veleidades políticas, do voluntarismo partidário. É inacreditável.
A parte que emenda a Lei Geral de Telecomunicações contém apenas um artigo e um parágrafo único. São singelas 12 linhas. Destruir é fácil.
A gente imagina que a Exposição de Motivos vai suprir essa falta de detalhamento, de substância, um arrazoado profundo, mas não. A Justificação da emenda para todas as agências está contida em… uma página. A destruição pode ser lacônica.
Quem iria regular? Um Conselho ligado ao Ministério. Mas a Anatel não é um “Conselho” ligado ao Ministério?
Vai ver que os Estados Unidos, o Reino Unido, a União Europeia, o Canadá estão enganados, coitados, com essa história de agência reguladora independente. Os Estados Unidos, que criaram o conceito de agência reguladora independente, certamente persistem no erro há quase 100 anos: a FRC – Federal Radio Commission foi criada em 1927, substituída pela FCC – Federal Communications Commission, em 1934.
O que falta na Anatel? Nada. Talvez sobre.
A Anatel segundo a Lei Geral: A Lei Geral de Telecomunicações tem coisas chatas como estabelecer (Art. 8°, § 2º) que a Anatel é “caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira”. E acrescenta (Art. 9°) que “a Agência atuará como autoridade administrativa independente, assegurando-se-lhe, […] as prerrogativas necessárias ao exercício adequado de sua competência”. E o Art. 19 arremata “À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade”.
É demais. Parlamentares querem acabar com essa farra… Não querem mais uma autarquia independente. Querem um Conselho dependente. Ainda que venha a ser composto por membros da Anatel, do Ministério, e representantes do setor regulado, da ‘academia’ e dos consumidores.
As agências incomodam: Sim, por essa autonomia da esfera puramente política, de quem subtrai uma parcela de poder.
São acusadas de tecnocratas, burocráticas, alheias aos anseios mais sensíveis do voto e despidas de uma accountability democrática. Mas não é nada disso.
As agências inserem-se dentro de um sistema de equilíbrio fino, entre, de um lado, o ardor da paixão política, com seu ouvido atento aos clamores populares, mas também seus arroubos irresponsáveis e, de outro, a precisa frieza do cálculo matemático indiferente, mas instruído e prudente das limitações da realidade e do que é possível alcançar. É esse equilíbrio que anima o investidor. É essa independência que favorece o usuário.
Com todos os defeitos conhecidos, as agências são, ainda, o melhor compromisso entre o ideal e o possível. E funcionam.