Caros,
O Programa de Admissão da Universidade de Harvard, que usa a cor da pele do candidato como um importante item de seleção foi considerado inconstitucional pela Suprema Corte dos Estados Unidos por ferir a Equal Protection Clause da 14ª Emenda à Constituição americana.
É difícil aquilatar o alcance dessa decisão. Ao final, quando implementada, ela fará com que retorne o valor do mérito individual de cada pessoa como principal consideração para acesso à universidade. Como sempre foi, desde que a Igreja criou as universidades na Idade Média: o acesso era baseado no mérito e as universidades estavam protegidas, pela Igreja, contra intervenção indevida de reis e nobres.
Porque o mérito é algo que está na base de nossa civilização, pensamos que vale a pena refletir um pouco sobre essa decisão.
A Suprema Corte lembrou que “distinções entre cidadãos apenas por causa de sua ancestralidade são, por sua própria natureza, odiosas para um povo livre cujas instituições são fundadas na doutrina da igualdade”.
A Equal Protection Clause se aplica então “sem levar em conta quaisquer diferenças de raça, cor ou nacionalidade”. Até porque “a garantia de igual proteção perante a lei não pode significar uma coisa quando aplicada a um indivíduo e outra coisa quando aplicada a alguém de outra cor”.
“Distinções raciais e étnicas de qualquer tipo são inerentemente suspeitas”, e a antipatia em relação a elas está profundamente “enraizada na história constitucional e demográfica de nossa nação”, reiterou a Suprema Corte americana.
Harvard e a Suprema Corte: O Programa de Admissão da Universidade de Harvard, que usa a cor da pele do candidato como um importante item de seleção, foi considerado inconstitucional pela Suprema Corte dos Estados Unidos por ferir a Cláusula de Proteção Igualitária da 14ª Emenda à Constituição americana. A decisão, no caso Students for Fair Admissions, Inc. v. President and Fellows of Harvard College, foi tomada em 29 de junho de 2023.
(Na verdade, a decisão da Suprema Corte se refere igualmente ao caso da Universidade da Carolina do Norte, mas, por economia, vamos nos referir principalmente ao caso de Harvard).
A Corte permite considerar, indivíduo a indivíduo, o valor e, logo, a seleção, de uma pessoa que tenha sido perseguida, inclusive por causa de sua cor, mas não permite mais assumir genericamente que a cor da pele ou a origem de uma pessoa (latina, asiática, africana, etc.) sejam um item determinante de seleção para entrar nos cursos da universidade.
É difícil aquilatar o alcance dessa decisão. Ao final, quando implementada, ela fará com que retorne o valor do mérito individual de cada pessoa como principal consideração para acesso à universidade. Como sempre foi, desde a criação da universidade pela Igreja, na Idade Média.
Porque o mérito é algo que está na base de nossa civilização, pensamos que vale a pena refletir um pouco sobre essa decisão.
A história e seus dribles: Proposta pelo Congresso e ratificada pelos Estados após a Guerra Civil americana, a Décima Quarta Emenda estabelece que nenhum Estado pode “negar a qualquer pessoa… a igual proteção das leis”. Os defensores da Cláusula dessa Igual Proteção descreveram seu “princípio fundamental” como “não permitindo nenhuma distinção legal baseada em raça ou cor”.
Mas foi a própria Corte Suprema quem permitiu um drible escandaloso nessa Equal Protection Clause da Constituição, permitindo, em Plessy v. Ferguson (1896), o tristemente famoso regime do separate but equal que permitiu manter, ainda durante cem anos, a segregação racial nos EUA. Na presente decisão, a Suprema Corte reconhece que seu papel nesse case foi ignoble.
A Suprema Corte tem esses momentos ignóbeis quando lança mão de expedientes para impor sua vontade contra a vontade expressa da nação, mesmo quando essa vontade está cristalizada no árduo processo de uma emenda constitucional.
A volta ao Direito: Eis que nos anos 1950 (Libertas quae sera tamen), a verdade inicial, inevitável da 14ª Emenda começa a reemergir: separados não podem ser iguais (Separate cannot be equal), mesmo que as partes tenham tratamentos perecidos.
A nova visão da Suprema Corte cristalizou-se finalmente na decisão unânime de Brown v. Board of Education 347 U.S. 483 (1954). Nela, a Suprema Corte anulou a segregação racial permitida com base em Plessy e iniciou o caminho de invalidar toda discriminação racial por parte dos Estados e do Governo Federal. Agora estava inequivocamente claro: o direito à educação pública “deve ser disponibilizado para todos em igualdade de condições”. Logo depois, em outro caso, ficou estabelecido que Brown exigia que as escolas admitissem alunos “em uma base racialmente não discriminatória”. Esses princípios fundamentais foram sendo repetidos e refinados em várias outras decisões.
O Direito avança: Nos anos seguintes, o “princípio fundamental de Brown de que a discriminação racial na educação pública é inconstitucional” atingiu outras áreas da vida. P. ex., leis estaduais e locais que exigiam segregação em ônibus (Gayle v. Browder), nas praias e balneários públicos foram derrubadas.
A Suprema Corte também derrubou as leis antimiscigenação, em Loving v. Virginia, 388 U.S. 1 (1967), um caso dramático. Mildred Delores Loving (negra e índia) casou-se com Richard Perry Loving (branco) em Washington-DC, porque as leis da Virgínia proibiam a relação sexual e o casamento interracial. Depois que voltaram para a Virgínia, a polícia, alta noite, invadiu a casa deles, para checar o que estariam fazendo. O casal foi condenado a um ano de prisão, mas permitiram que deixassem o Estado sob condição de não retornarem por 25 anos… Mildred ficou com saudade da família, pediu ajuda ao Procurador-geral dos EUA, Robert Kennedy e entraram na Justiça. A Suprema Corte, por unanimidade, derrubou as leis que proibiam o casamento multirracial.
Essas decisões refletiam o “propósito central” da Equal Protection Clause: tinha de aplicar-se “sem levar em conta quaisquer diferenças de raça, cor ou nacionalidade”
Era a nação americana se encontrando com seu povo: e agora, mesmo para Havard, “a garantia de igual proteção não podia significar uma coisa quando aplicada a um indivíduo e outra coisa quando aplicada a alguém de outra cor”.
Justice Powell e a Affirmative Action: Em 1973, Allan P. Bakke, um engenheiro e ex-marine, buscou admissão na faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, Davis. Depois de ser rejeitado duas vezes pela Universidade, Bakke entrou com uma ação contestando a constitucionalidade do programa de ação afirmativa da escola. Bakke entrou na universidade, mas a Affirmative Action voluntária (não imposta pelo governo) podia ser aceita, em certas situações. Cotas, porém, não podiam ser aceitas (p. ex., reservar 16 vagas em 100 só para negros).
A Suprema Corte votou de forma profundamente dividida (highly fractured) no caso Regents of Univ. of Cal. v. Bakke (1978). Os 9 juízes emitiram 6 votos diferentes. A decisão da Corte foi escrita pelo Justice Lewis F. Powell Jr., muito citado agora neste caso Students for Fair Admissions v. Harvard College.
No geral, a aceitação da ação estatal baseada na raça é rara por uma razão: “distinções entre cidadãos apenas por causa de sua ancestralidade são, por sua própria natureza, odiosas para um povo livre cujas instituições são fundadas na doutrina da igualdade”.
“Distinções raciais e étnicas de qualquer tipo são inerentemente suspeitas”, explicou o juiz Powell, e a antipatia em relação a elas está profundamente “enraizada na história constitucional e demográfica de nossa nação”.