Notas & Comentários – 3-5-2024

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Liberdade de Expressão e Democracia: Entre esses dois valores, liberdade de expressão e democracia, o primeiro é o mais importante. O segundo não pode existir sem o primeiro.

A ordem antiga, e ainda cristalizada em muitas leis, se baseia nesse pressuposto. Bem entendido, a liberdade de expressão não é um bem absoluto. Sendo também claro que o alcance do que se diz numa rede social é muito maior do que uma bravata de barzinho. Uma mentira dita numa taberna ou num barzinho não derruba um governo, mas se gritada numa rede social pode abalar pessoas e governos.

A questão é: qual a nova linha de demarcação, aquela além da qual restringir a liberdade de expressão equivale a suprimir a democracia?

E, mais fundamental, pode haver democracia em um Estado não soberano?

O Dilema: Numa tentativa de delinear a fronteira da soberania nacional e os limites democráticos da restrição à liberdade de expressão, surgiram várias iniciativas para regular minimamente as Big Techs. O dilema é o seguinte:

– Se as Big Techs não forem corretamente reguladas, qualquer
soberania é uma ficção;

– Se a liberdade de expressão nas plataformas digitais (“nas” não “das”) for atacada, o risco é a democracia tornar-se mera caricatura.

Se, como um jornal, as Big Techs tiverem discrição editorial, i. e., se puderem escolher o que vai ou não vai na rede, devem, claro, se responsáveis pelo conteúdo que nela circulam. Se, porém, forem como um common carrier, não têm responsabilidade: o common carrier não escolhe seu conteúdo, só pode recusar conteúdo que a Lei defina como ilegal.

Uma concessionária de serviço telefônico não tem responsabilidade sobre o conteúdo de uma ligação, porque ela não escolhe o conteúdo da conversa – na verdade, desconhece esse conteúdo.

Dois Mundos: Note-se que é simples monitorar o conteúdo de um jornal impresso e mesmo de uma estação de TV, coisas essencialmente locais, de extensão e difusão limitadas. No mundo pré-Big Techs, era razoável limitar o número de estações de TV que uma mesma pessoa ou afiliada podia controlar, para que não tivesse influência muito grande em muitas cidades. Ou vedar a propriedade cruzada de grandes veículos impressos (ou de estação de FM) e estações de TV numa mesma localidade, como fez durante muito tempo a cross media ownership rule, nos Estados Unidos.

Entretanto, o Facebook, o Youtube, o Instagram, o X, o WhatsApp, veículos muito mais poderosos do que uma TV, estão em todas as cidades do mundo. Já uma estação de TV é local. Paradoxal.

Uma estação de TV era e permanece sendo submissa a uma agência nacional, a regras mínimas de conteúdo, de cadeia nacional, de limites de tempo a publicidade, etc. Antigamente, tinham até de manter uma certa equidistância política (fairness doctrine). Nenhuma agência, porém, controla nenhuma Big Tech. Dois pesos, duas medidas. Um personagem de Chico Anísio, Bozó (obrigado, Google), se gabava em exibir um crachá da TV Globo. As grandes redes sociais controlam o Globo sem nenhum crachá, sem nenhuma  autorização, sem nenhum controle de propriedade cruzada ou múltipla; sem regras de governança – salvo as que a própria Big Tech se outorga.

O serviço de Radiodifusão à nacional; o serviço de Telecomunicação é nacional; ambos submissos a um regulador nacional, sujeitos a uma Lei nacional. A Internet é apátrida; paira acima de leis.

Para revisar um jornal, basta ler algumas páginas. O número de páginas das redes sociais é incontável, indefinidamente grande. Assim, controlar redes sociais é um empreendimento muito mais complexo comparado a um jornal ou a uma TV, devendo, necessariamente, usar palavras chaves, inteligência artificial, etc. Nesse sentido, responsabilizar, sem mais, uma rede social por negligência é algo possivelmente injusto: o culpado pode ser um robô.

Um homem consegue ler todas as páginas de um jornal, mas não de uma rede social. Ainda bem, pois não vale a pena.

O perigo da Terceira via: Uma rede social pode atuar, como hoje, sem legislação do país; ou pode ser regulada pelo país.

Resta, porém, uma terceira vertente, um atalho, talvez: quando uma Big Tech e um governo encontram um fim comum, sem lei que a ambos comande, sem estrutura que a ambos controle. Sem lei, uma rede social pode fazer o jogo que um governo quer, mas não pode.

Se aquele que era o mais poderoso (o governo) se conluia com aquele que controla o fluxo da informação (as Big Techs), tudo estará perdido.

PL das Fake News: O PL das Fake News, entre outros objetivos, procurava modificar o regime de responsabilidade das plataformas em relação a conteúdos que pudessem ser considerados ofensivos. Em algumas versões do texto, previu-se que, caso a postagem do usuário incorresse em algum tipo de delito, não seria necessária nem ordem judicial prévia e nem uma notificação ou denúncia de terceiros sobre aquele conteúdo.

As plataformas teriam, em alguns casos, uma obrigação positiva de monitoramento ativo de suas redes, a fim de detectar a presença desses conteúdos ofensivos e removê-los de ofício. Estaria derrogado, nessa questão, o MCI – Marco Civil da Internet -, criando um novo sistema de responsabilidade para as Big Techs. Aqui, é necessário prudência, pela tarefa titânica, mesmo para Big Techs.

Mas o PL das Fake News, ao menos até o momento, não angariou votos suficientes para prosperar.

Esse é um problema da Nova Ordem Digital: Congressos, com as mais variadas e variegadas posições e interesses sobre qualquer assunto, não têm agilidade nem mecanismos para resolver oportunamente as grandes questões que afetam e afligem o eleitor – esse ente que se acha representado e defendido pelos eleitos. Enquanto isso, uma Big Tech cria suas regras, muda suas regras, elimina suas regras, constrange usuários, pune usuários, suprime usuários, e um projeto de lei nem chegou, ainda, a ser discutido numa comissão do Congresso Nacional.