Notas & Comentários – 05-07-2024

Clique para continuar a leituraLer novamente a Apresentação desta Nota

II Quattrocento: Corria o ano de 1402. Florença escapara de um cerco pelos milaneses de Giangaleazzo Visconti que, conforme a profecia de um eremita toscano, morreria naquele ano. Morreu. Começava um dos séculos mais brilhantes e esfuziantes das artes na história da humanidade.

Florença brilhava naquele século XV. Século de tantas coisas grandiosas, tantas invenções e tantas descobertas – “o século que viu Colombo, viu Gutenberg também” no condoreiro verso de Castro Alves. Mas Florença viu mais. Porém, a América se descobre uma vez, e uma vez se inventa a imprensa, por mais seminal, por mais espetacular. Mas naquele Quattrocento se criava continuamente o belo – na pintura, na escultura, na arquitetura. Naquele Quattrocento a beleza explodia nas obras de Fra Angelico, de Piero della Francesca, de Boticelli, de Masaccio, de Donatello, de Andrea del Verrocchio (semente de gênios, que teve a honra de ser mestre de Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli, Perugino e Ghirlandaio!), de Antonio Pollaiuolo, de Leon Battista Alberti, de Filippo Lippi, de Filippino Lippi, de Domenico Ghirlandaio (Mestre de Michelangelo). E foi no Quattrocento que nasceram Da Vinci, Michelangelo, Rafael… Todos esses gênios trabalharam em Florença, são devedores de Florença. E havia o resto da Itália. Havia Veneza com Jacopo Bellini, Gentile Bellini, Antonello da Messina, Giovanni Bellini, Andrea Mantegna, Carlo Crivelli, Cima da Conegliano, Vittore Carpaccio… E havia aqueles nascidos no Quattrocento veneziano mas que também criaram ao longo do Cinquecento? Lorenzo Lotto, Giorgione, o imenso Tiziano…

Nunca, na história da humanidade houve um ajuntamento tão grande de tão grandes artistas criadores de tantas obras belas.

Que seria de nossos olhos sem Florença, sem Veneza, sem a Itália?

 

A grandeza e os riscos: Na Renascença descobriam-se esculturas clássicas perdidas, enterradas há séculos , caçavam-se manuscritos antigos nos monastérios e bibliotecas Europa afora; havia uma sede do belo e do conhecimento. Tudo parecia possível. Mas essa efusão trazia riscos inesperados.

Naquele século, o homem ousava perigosamente elevar-se a Deus, com seu engenho, tentando coisas grandiosas, criando uma nova beleza. Os feitos do homem, porém, por maiores, se desprovidos de humildade, da consciência da real estatura do homem, podem gerar uma presunção de onipotência e onisciência capazes de, paradoxalmente, precipitá-lo do cimo do monte do sublime ao abismo do vale mais escuro.

Depois do Concurso: Fundir uma escultura em bronze era uma atividade que exigia alto grau de habilidade. As possibilidades de acidente eram tão reais que o grande Michelangelo mandava rezar uma Missa sempre que começava a verter bronze fundido no molde de uma escultura…

Lorenzo Ghiberti (aqui auto-representado numa das portas do Batistério) não parecia um concorrente à altura para esculpir as portas do Batistério de Florença. Tinha apenas 24 anos, e não era membro nem da guilda dos ourives nem da dos escultores. Mas isso não o desclassificava. O importante era o modelo e ele não apenas apresentou, digamos, o melhor, mas construiu um networking potente.

Ghiberti passou os próximos 20 anos, de 1403 a 1424, trabalhando nas portas do Batistério, aquelas que o grande Michelangelo chamou de “As Portas do Paraíso”.

Ao perder o concurso, Filippo Brunelleschi tomou uma decisão que mudou a história da arquitetura: 1) abandonou a carreira de escultor; 2) foi para Roma estudar os monumentos clássicos; 3) e se tornou o pai da arquitetura moderna.

 

Brunelleschi em Roma: Acompanhado do amigo Donatello (um artista tão mal-humorado quanto ele), Filippo Brunelleschi foi a Roma, estudar as antiguidades greco-romanas, ou seja, foi se especializar em Renascença. Entre idas e vindas, ficou na cidade uns 13 anos, saindo e voltando algumas vezes.

Roma já não era nem a sombra do que fora. De uma população de um milhão de pessoas no auge do Império, contava então com uns 50 mil habitantes, menos do que Florença ou Londres. As muralhas ficaram grandes demais para as edificações dentro. A antiga Basílica de São Pedro, sem manutenção adequada durante o exílio de Avinhão, ameaçava desmoronar. Sem comércio e sem indústria, a única receita da cidade advinha dos peregrinos: as relíquias ainda lá estavam: em Santa Croce in Gerusalemme, o dedo com que o apóstolo São Tomé tocara o Lado de Nosso Senhor; em São Paulo Fora dos Muros, a cabeça daquela Samaritana convertida por Nosso Senhor no Poço; em Santa Maria Maggiore, a Manjedoura, em que o Menino foi posto ao nascer em Belém. E o Fórum, o coração do Império, se tornara pasto de vacas e carneiros, e era chamado de Campo Vaccino, – campo das vacas. Mas mesmo assim ruinas de Roma constituíam um livro aberto, cheio de lições vivas e Bruneleschi aproveitou bem.

Filippo anotou calmamente tudo que viu, as proporções usadas em cada ordem arquitetônica (p.ex., a altura do entablamento em uma coluna coríntia é um quarto da altura da coluna sobre a qual repousa; e a altura de cada coluna é dez vezes maior que seu diâmetro). Mas anotou com cifras, inclusive dos chamados algarismos arábicos, apesar de Florença haver proibido o uso desses algarismos estranhos, para manter seus conhecimentos e descobertas só para ele mesmo…