Caros,
Quem começou a estudar telecomunicações e radiodifusão nos anos 1970-80 tinha pouca alternativa. Só havia duas fontes ao mesmo tempo eruditas e razoáveis: os documentos da FCC e os Cases da Justiça americana. Eu mesmo li muitíssimas dezenas de Orders, Notices of Inquiry (NoI), Notices of Proposed Rulemaking (NPRM), Reports and Orders da FCC. Material riquíssimo. E igualmente li muitas dezenas de cases ligados a telecomunicação, radiodifusão, liberdade de expressão, serviço de informação, privacidade, etc., dos Circuits, das Courts of Appeal e da Supreme Court americana. Naqueles remotos anos 1970 e 1980, a única maneira de obter tais documentos era pedindo a amigos a gentileza de fazer cópia “xerox” lá e mandar para o Brasil.
Livros, comprei alguns, mas se desatualizavam rapidamente. A tecnologia era mais veloz do que edições e atualizações. Casos houve em que, antes de terminar a leitura de um livro, não valia mais a pena continuar, pois mudanças substanciais se interpunham.
Escrevi estas Notas como um obituário, e como preâmbulo a comentários que tenciono fazer sobre a recente decisão da FCC no documento intitulado Safeguarding and Securing the Open Internet. (Apr. 25, 2024), sobre a reintrodução do princípio da neutralidade de rede nos EUA, às custas de tornar o acesso à Internet um Common Carrier.
No Report and Order da FCC, o Report, que seria normalmente o suporte da Order, não se sustenta e, logo, a Order fica no ar, sem sustentação. O modelo das agências reguladoras independentes faliu em sua própria fonte – os Estados Unidos. Mas não no Brasil.
É reflexo dessa falência a recente decisão da Suprema Corte americana anulando a Doutrina Chevron, que dava às agências reguladoras grande deferência por parte dos tribunais judiciais. As agências, em razão de uma galopante politização, deixaram de ser referência e perderam a deferência a que faziam jus.
Epitáfio para a FCC: RIP – Requiescat In Pace.
A fonte antiga – a FCC e as Courts: Quem começou a estudar telecomunicações e radiodifusão nos anos 1970-80 tinha pouca alternativa. Só havia duas fontes ao mesmo tempo eruditas e razoáveis: os documentos da FCC e os Cases da Justiça americana. Eu mesmo li dezenas e dezenas de Orders, Notices of Inquiry (NoI), Notices of Proposed Rulemaking (NPRM), Reports and Orders da FCC. Material riquíssimo. E igualmente li muitas dezenas de cases ligados a telecomunicação, radiodifusão, liberdade de expressão, serviço de informação, privacidade, etc., dos Circuits, das Courts of Appeal e da Supreme Court americana. Naqueles remotos anos 1970 e 1980, a única maneira de obter tais documentos era pedindo a amigos a gentileza de fazer cópia “xerox” lá e mandar para o Brasil.
Livros, comprei alguns, mas se desatualizavam rapidamente. A tecnologia era mais veloz do que edições e atualizações. Casos houve em que, antes de terminar a leitura de um livro, não valia mais a pena continuar, pois mudanças substanciais se interpunham.
Havia também a britânica Oftel (Ofcom, a partir de dezembro de 2003). O Oftel introduziu, p. ex., o conceito de Price Caps, em seguida adotado pela própria FCC e outros países, para cálculo de tarifas, e liberou as utilities da trabalhosa agonia do Rate of Return.
O trem, o avião e o foguete: O problema era a velocidade, com o background mudando rapidamente. Quando um avião está levantando voo a gente vê pela janelinha as coisas passando rapidamente. O Trem de Ferro era mais lento, mas Manuel Bandeira já cantava, atordoado pela velocidade: “Passa boi, / passa boiada, / passa galho / de ingazeira”…
A gente nem sempre percebe o passar do tempo. Mas lembro de um presente, um livro, que meu amigo Leonel, já então ex-Conselheiro da Anatel, morando nos EUA, me deu, em 1999. O livro recém- publicado era “The New New Thing: A Silicon Valley Story”, de Michael Lewis. Comecei a ler, mas numa velocidade normal, não como na poesia de Bandeira – “Vou depressa/ Vou correndo/ Vou na toda”. Em suma, antes de terminar, o livro estava desatualizado. Parei… A história que Lewis contava era relevante, mas o pano de fundo passara como um foguete, “na toda”.
O Modelo da Agência Reguladora no mundo todo foi, obviamente, a FCC. P. ex., no Brasil são 5 conselheiros ou diretores (commissioners), mudando apenas um a cada ano, para manter continuidade e coerência administrativa.
A LGT – Lei Geral de Telecomunicações foi basicamente concebida e escrita por Carlos Ari Sundfeld e Floriano Azevedo Marques, com quem todos contraímos uma dívida de gratidão impagável. Eu mesmo tive uma pequenina participação no processo, tendo sido contratado pelo Ministro Serjão para, i.a., desenhar a Agência Reguladora.
Apesar da filiação à FCC, a Anatel tem duas grandes vantagens sobre a agência americana. Primeiro, na FCC, o Presidente da República, ao assumir seu mandato, indica o novo Chairman da FCC; e, assim, mantém sempre uma maioria de 3 a 2 de seu partido na FCC. Segundo, o Chairman da FCC é quem define a agenda das reuniões da Commission. Na Anatel, cada Conselheiro define sua agenda, o que quer votar, quando quer votar, sem interferência do Presidente. E nenhum partido político tem um direito, por lei, de manter a maioria do Conselho Diretor: até porque o Presidente da República, ao assumir seu mandato, não tem o poder legal de mudar o Presidente da Agência (mas pode constranger o Presidente a sair, como ocorreu com Schymura).
O fim das fontes: A fonte, obviamente, tem de ser límpida, cristalina. Não se bebe água turva. Até o cordeiro da fábula sabia disso:
Un Agneau se désaltérait
Dans le courant d’une onde pure.
Un Loup survient à jeun qui cherchait aventure …
O lobo esfomeado turva, inviabiliza, a água pura do cordeiro.
Da água suja e do lobo é bom sair correndo. Mais uma vez, Manoel Bandeira:
Vou mimbora, vou mimbora,
Não gosto daqui.
Só que ir para Ouricuri não resolve mais.
No mundo intelectual, a ideia boa é o cordeiro, a mentira é o lobo esfomeado, em jejum (à jeun).
A água que jorra da FCC ficou turva. A Suprema Corte reagiu ao abuso das agências.
Obituário: Escrevi essas Notas como preâmbulo a comentários que tenciono fazer sobre a recente decisão da FCC no documento intitulado Safeguarding and Securing the Open Internet. Declaratory Ruling, Order, Report and Order, and Order on Reconsideration (Apr. 25, 2024), que, a título de reintroduzir o princípio da neutralidade de rede nos EUA, impôs Common Carrier como acesso à Internet.
A FCC havia deixado de ser uma fonte confiável para estudos há já vários anos. Esta decisão é seu obituário. O sofisma começa pelo título. A Open Internet já estava safeguarded, e a Order não secure nada além. Constitui enorme perda de tempo ler esse documento da FCC: não serve como referência, como material de estudo. Escrevi sofisma por delicadeza.
No Report and Order, o Report, que seria normalmente o suporte da Order, não se sustenta e, logo, a Order fica no ar, sem sustentação. O modelo das agências reguladoras independentes faliu em sua própria fonte – os Estados Unidos. Não no Brasil. É reflexo disso a recente decisão da Suprema Corte americana anulando a Doutrina Chevron, que dava às agências reguladoras grande deferência por parte dos tribunais judiciais. As agências, em razão de uma crescente politização, deixaram de ser referência e perderam a deferência a que faziam jus. Epitáfio da FCC: RIP – Requiescat in Pace.