Notas & Comentários – 10-06-2022

Galileu discorre sobre o ônus da prova: Na Carta à Grã-duquesa Cristina, Galileu estabelece que ‘há proposições científicas que são provadas e outras que são apenas enunciadas. Se uma proposição provada contradiz o significado aparente da Bíblia, então, segundo a prática teológica, a passagem bíblica deve ser reinterpretada’. Exato. Essa sempre foi a posição da Igreja.

A seguir, porém, Galileu emite uma proposição muito mais rigorosa do que a posição da Igreja, com um grau de intolerância que a Igreja não tinha. Galileu diz que ‘quanto àquelas proposições que não foram rigorosamente demonstradas, qualquer coisa contrária à Bíblia nelas envolvida deve ser considerada indubitavelmente falsa, e deve ser provada assim por todo meio possível’. Isso, claramente, não é a posição da Igreja, e é fácil de perceber. P. ex., o Sistema de Copérnico foi enunciado, não foi rigorosamente demonstrado, e continha elementos que contrariavam a interpretação tradicional das Sagradas Escrituras, mas nunca fora condenado. Sim, o Sistema de Copérnico foi apresentado como modelo, como hipótese de trabalho, e nunca fora condenado.

Galileu e a inversão do ônus da prova: A argumentação de Galileu começa a ficar mais estranha quando, na Carta à Arquiduquesa Cristina, ele diz o seguinte: ‘se as conclusões físicas demonstradas não precisam se subordinar a passagens bíblicas, deve ser demonstrado que estas (passagens bíblicas) não interferem naquelas (conclusões físicas), logo, antes de uma proposição física ser condenada deve ser mostrado que ela não foi rigorosamente demonstrada, e isso deve ser feito por quem a julga falsa, não por quem a julga verdadeira’…

Eis que o ônus da prova acaba de ser invertido. Galileu afirma, em outras palavras, que não cabe a ele provar que o Sistema de Copérnico é verdadeiro, mas aos teólogos provarem que é falso.

A sutileza da inversão: Quando Galileu diz que ‘antes de uma proposição física ser condenada deve ser mostrado que ela não foi rigorosamente demonstrada’, ele subentende, claro, que a verdade do Sistema de Copérnico foi rigorosamente demonstrada. Até porque ele jamais proporia uma regra tão solene que iria contra seu próprio pensamento. Assim, ele deixa subentendido, justamente porque não tem prova a oferecer.

Interessante. A Igreja nunca condenara o Sistema de Copérnico. Já fazia mais de 70 anos que De Revolutionibus Orbium Coelestium havia sido publicado, e a Igreja nunca fez nada contra. O livro de Copérnico, aliás, era dedicado ao próprio Papa Paulo III, e seu prefácio tivera a preocupação de mencionar que se tratava de um modelo matemático, não de uma realidade. Com efeito, ninguém admitiria que os planetas descreviam nos céus todos aqueles incríveis ciclos e epiciclos copernicanos. Mas Galileu, do alto de sua empáfia, avançou exatamente nessa direção, assimilando o modelo à realidade. Na verdade, Galileu estava, inadvertidamente, criando o embate, forçando o impasse, encurralando as opções, fechando as saídas do beco. Ele queria liberar o Sistema copernicano de ter de provar sua veracidade, e acabou levando à proibição do livro de Copérnico, mais de 70 anos após sua publicação.

O Modelo e a Realidade: A Terra gira em torno do Sol. Galileu, por sua excepcional intuição, defendia uma tese genericamente correta, ainda que errônea em vários aspectos. Mas havia alguns problemas: i) o Sistema de Copérnico dava resultados que correspondiam à observação, como o de Ptolomeu também fazia há séculos; mas ii) o movimento dos planetas NÃO ocorriam como Copérnico ou como Ptolomeu descreviam em seus modelos; aquela multidão de ciclos e epiciclos não correspondiam à realidade; nem as órbitas eram circulares; e iii) Galileu não apresentara, nem nunca conseguiria apresentar, nenhuma prova dos movimentos da Terra. Como, assim, os teólogos iriam mudar a interpretação da Bíblia?

Certamente, foi esse último aspecto que levou Galileu a, muito sutilmente, propor a inversão do ônus da prova. Como ele não conseguia provar que estava certo, outros teriam de provar que ele estava errado.

Assim, a imprudência e a presunção de um homem, mesmo sendo um desses grandes gênios da história, precipitaram os acontecimentos que mudariam a percepção e a relação entre a ciência e a Religião. E é inacreditável que só mais de 400 anos depois um homem – Arthur Koestler -, um homem honesto, obcecado pela verdade dos fatos, humilde o suficiente para mudar de ideia diante da evidência, um homem que não era cientista, mas um grande jornalista da ciência, que não era religioso, mas comunista; um judeu, não um católico; um homem com muito a perder e pouco a ganhar com as teses que defendeu, um homem, enfim, tornou toda essa história muito mais clara, revendo as fontes, lendo os livros, perscrutando as correspondências, ligando os pontos. É incrível.

E por que Galileu avançou nessa direção? Galileu estava com quase 50 anos, e nunca expressara apoio público ao Sistema de Copérnico. Apoiava o Sistema, mas em privado. E aí, subitamente, se tornou seu campeão, sinônimo mesmo do Sistema. Por quê?

Até ele construir um pequeno telescópio e apontá-lo para os céus – e mudar a concepção dos céus -, Galileu não tinha notoriedade ou autoridade suficiente para defender publicamente o Sistema de Copérnico. Possivelmente tinha o temor de ser massacrado pela Academia, ainda totalmente imbuída da física aristotélica. Porém, após a publicação e tremendo sucesso do Sidereus Nuncius, em 1610, Galileu, o Mensageiro das Estrelas, sentiu-se catapultado ao estrelato, tornando-se a imagem mesma da Ciência: aí expressou publicamente sua adesão ao Sistema de Copérnico, defendendo essa tese implacavelmente, ferozmente; e, logo, essa tese tinha de ser a correta, e aceita por todos. Quem fosse contra estaria, não antagonizando Copérnico, nem Heráclides do Ponto (primeiro idealizador de um sistema misto de heliocentrismo e geocentrismo, como Tycho Brahe), nem Aristarco de Samos (primeiro defensor consistente do heliocentrismo), mas estaria diminuindo a autoridade dele, Galileu Galilei.

E, após Galileu, é curioso notar como, ao desmoronar a física de Aristóteles, quase que automaticamente ficou permitido desprezar a filosofia aristotélica – duas coisas distintas. O efeito boiada das generalizações: antes, tudo que vinha de Aristóteles era bom, por princípio; depois, tudo, por princípio, tornou-se questionável ou ruim. Essa confusão levou a uma incalculável perda intelectual para humanidade.