Notas & Comentários – 19-01-2018

Brasília, 19 de janeiro de 2018

A FCC corta subsídio para o índio e o pobre em área rural – será?: A notícia que apareceu no Brasil (e nos EUA) soa preocupante. Para dar uma ideia, tomamos alguns links meio ao acaso:

FCC CORTA SUBSÍDIO DE TELECOM A ÍNDIO E ÁREA RURAL NOS EUA http://www.telesintese.com.br/fcc-corta-subsidio-de-telecom-indio-e-area-rural-nos-eua/
Advocates worry FCC changes to Lifeline could hit Indian Country hard https://www.nhonews.com/news/2017/dec/05/advocates-worry-fcc-changes-lifeline-could-hit-ind/
FCC begins scaling back internet subsidies for low-income homes https://www.theverge.com/2017/11/17/16669716/fcc-lifeline-scaled-back-tribal-lands-broadband-discount-limits

Coitados dos índios. O que eles, tão inocentes e ingênuos, teriam feito para a malvada FCC cortar seus subsídios? Os índios e os pobres das áreas rurais dos EUA vão ficar sem poder falar ao telefone, e, mais grave ainda, sem acessar Internet? Como poderão ser cidadãos dessa forma? Como poderão sobreviver sem acessar fake news?

O chairman da FCC, Ajit Pai, é retratado como um capeta, retirando recursos dos programas de universalização, achando que há desperdício… Coisa de republicano. Esse Trump…

Desconfiados – desconfiadíssimos – fomos dar uma olhada na realidade…

Às vezes, parece que a turma que, nos EUA, mais reclama de fake news costuma ser a que mais gera… fake news. Mas não nos adiantemos.

Universalização de serviços de telecom nos EUA: Um programa importante de universalização das telecomunicações nos EUA chama-se Lifeline. Tornou-se, contudo, um instrumento político e, como sói acontecer, ficou eivado de fraudes. Como nosso Bolsa Família. A politicagem e a fraude levaram o Lifeline a se tornar um problema, muitas vezes favorecendo a quem não precisa e se afastando de muitos dos reais desprovidos de recursos para contratar os serviços.

Lembrando que nos EUA os recursos destinados à universalização são repassados diretamente ao usuário carente, não à empresa que presta o serviço. Mas a prestadora de serviço, pré-selecionada pelo usuário, às vezes termina prestando um mau serviço, um serviço inferior. E o beneficiário acaba sendo um índio de mentirinha, ou outra pessoa com renda suficiente para pagar suas próprias telecomunicações – um pobre de mentirinha. Mas de mentirinha em mentirinha, lá se vai a verba da universalização.

O Programa Lifeline foi estabelecido em 1985 para dar descontos em chamadas telefônicas. Ambicionava levar a todos os lares, independentemente da renda, serviços de telecomunicações vitais. A partir de 2016, o Programa também apoia o acesso à banda larga, possibilitando uma diminuição de US$9.25 nas faturas mensais em serviços de voz, ou de banda larga, ou dos dois. Para quem vive em terras tribais eram dados mais $25, totalizando $34.25.

Sendo o Programa importante para essa parcela da população menos favorecida, é razoável, é fundamental mesmo, que a FCC pense em maneiras eficientes de fazer o benefício chegar a quem realmente precisa, tapando os inúmeros ralos fraudulentos por onde escorre o benefício.

A Realidade é outra: O órgão de controle nos EUA, o Government Accountability Office (GAO), uma espécie de TCU com muito menos poder, descobriu grandes problemas na execução do Programa Lifeline. Por exemplo, descobriu que 1.234.929 assinantes do Lifeline não estavam habilitados para usufruir do benefício. Também descobriu que 6.378 pessoas incluídas entre os beneficiários estavam mortas. Apenas para esses dois tipos de fraude, o Programa perdia US$137 milhões todo mês…

E há coisas incríveis. P. ex., todos os habitantes das cidades de Tulsa e Reno, por exemplo, estão habilitados a receber mensalmente os US$34.12 do Lifeline, por estarem em região de índios, territórios tribais… O problema de certas filosofias (e ideologias), por serem falsas no geral, é que podem gerar consequências absurdas – no geral e no particular.

A FCC descobriu que 68% das pessoas vivendo em zonas rurais e em áreas tribais não têm acesso a banda larga. Os recursos do Lifeline, ao invés de chegar para essas pessoas, estavam sendo dragados pelos ralos da fraude.

Como o cobertor (e o bolso) dos recursos é curto, tamanha fraude vai deixar muitos necessitados com os pés (e bolsos) desprotegidos. Por isso, muitos pobres, muitas tribos e organizações tribais pediram à FCC que fizesse algo. E a FCC fez.

Universalização – corrupção facilitada: O Programa Lifeline permitia que uma pessoa, ela mesma, se declarasse residente de Terras Tribais, fazendo jus a $34.25 de auxílio mensal para ajudar a pagar a conta de telecomunicações. Sem mais checagem. Afinal, Rousseau já havia dito que o homem é naturalmente bom; e o homem natural de uma tribo indígena, mais próximo à natureza, deve ser muito melhor ainda…

E aqui a coincidência entre índio e Rousseau, um dos pais filosóficos da Revolução Francesa, nos lembra o admirável livro de Afonso Arinos de Melo Franco, que mostra, e muito bem, como a influência da excessiva romantização da cultura indígena pelos europeus nos séculos XVI, XVII e XVIII criou o ambiente propício para o surgimento e amadurecimento da filosofia do bom selvagem, da visão do homem naturalmente bom. (Afonso Arinos de Melo Franco. O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa. José Olympio, 1976)

Esse sistema baseado em código de honra, que acredita na palavra dada e age em função dela, funcionaria nos EUA com sua antiga cultura. Não funciona no mundo do ativismo digital, que alterou o significado de honestidade, de correção, de dignidade, de honra, enfim. Segundo as leis ideológicas do ativismo digital, o oprimido, a minoria, o coitadinho (todos assim auto definidos, claro) pode alterar os fatos, o sentido das palavras para obter um benefício que lhe é devido. É o novo homem supostamente bom, o novo bom selvagem.

Foi a bancarrota desse sistema baseado na palavra, que pressupõe um zelo pela honra, que levou um reseller de serviço – para ganhar com o subsídio – a vender mais assinaturas do serviço do que o número de residentes numa área tribal no Havaí…
Só mais um exemplo da falência do sistema de honra nos EUA dos militantes digitais: apesar de a regra da FCC ser de prover subsídio para apenas uma pessoa por residência, o TCU dos EUA (o GAO) descobriu 10.000 (dez mil!) – temos que escrever por extenso, para ficar claro que não há zeros demais – 10.000 beneficiários em um único endereço.

A FCC, agora, entendeu isso. Talvez, até, a FCC tenha entendido antes, mas sua parte ativista pode ter, deliberadamente, dado de ombros, exatamente como no caso das divergências encontradas no cadastro do Bolsa Família. Simplesmente não interessava ao governo de plantão enxugar a base de possíveis eleitores beneficiados.

A FCC agora entendeu e agiu. Vai exigir comprovação e verificação de residência tribal, realizada por alguma entidade independente. A cultura americana mudou. Já não se podem usar os pressupostos nem de honra nem de honestidade do cidadão.

Universalização – com um mínimo de respeito e de qualidade: A FCC percebeu que havia fraude não apenas no subsídio recebido pelo usuário, mas também na qualidade do serviço fornecido. Como se o bem buscado não fosse o serviço, mas os $34.25; como se qualquer serviço servisse, até serviço ruim, até nenhum serviço, até desserviço, desde que os $34.25 caíssem no bolso.

Por isso, a FCC está proibindo o assim chamado “premium Wi-Fi” – muitas vezes a fraude vem empacotada numa expressão pomposa – , que no caso é algo como um wi-fi de McDonald, só que destinado a servir toda uma comunidade carente. O wi-fi McDonald, concluiu a FCC, não consegue ajudar o aluno que precisa pesquisar na Internet para fazer seu dever de casa… em casa. A FCC está exigindo, p. ex., que, no caso de acesso móvel, a qualidade seja no mínimo de 3G. Mais, a FCC está incentivando que banda larga seja ofertada com infraestrutura própria e não apenas com redes (deficientes) de terceiros, pensadas exclusivamente para atrair consumidores talvez alguns desinformados, alguns incautos, alguns cúmplices.

Código de Honra da Cavalaria – o valor da palavra: O rei João, o Bom, da França, perdeu a batalha de Poitiers em 1356 e foi feito prisioneiro dos ingleses, e levado para a Inglaterra. Plena Guerra dos Cem Anos. Os ingleses, como era o costume das guerras, condicionaram a libertação do rei da França à cessão de muitas terras e de um enorme resgate. O rei Jean, le Bon, foi libertado para tentar juntar o dinheiro do resgate na França, após dar sua palavra de honra de que voltaria, caso não conseguisse o resgate. Não tendo conseguido juntar o dinheiro, voltou e se entregou de novo aos ingleses. Morreu em Londres, coitado. Prisioneiro, mas honrado.

Mas isso, claro, foi numa época em que a palavra dada era um ponto de honra. E, como a honra era ponto fundamental, cumprida.

Nas próximas N&C faremos mais algumas considerações sobre essa questão da palavra, da honestidade e da honra.