Caros,
Sempre houve a presunção de uma estreita relação entre informação, razão e utilidade. Ora, esse nexo começou a ser quebrado pelo Telégrafo, em meados do séc. XIX.
Sim, antes do telégrafo, a informação se propagava apenas na velocidade do trem, uns 55 km/h, ou do cavalo, ou da diligência, ou do homem correndo, como Fidípides após a Batalha de Maratona). E, antes do telégrafo, a notícia que importava tinha um interesse local, uma utilidade particular, mesmo se fosse nacional.
O Telégrafo removeu a distância como limitador da velocidade da informação. Pela primeira vez, o transporte e a informação foram desatrelados.
A consequência principal da tecnologia do Telégrafo foi que a informação começou a não ter mais contexto: tornou-se uma coisa de vida própria, solta. Ou seja, o valor da informação não precisava mais estar ligado a nenhuma função social ou política no processo de ação e decisão das pessoas.
O Telégrafo transformou a informação numa commodity, numa coisa que podia ser comprada e vendida sem relação com sua utilidade ou significado.
Mas o potencial do Telégrafo para transformar a informação em commodity só ocorreu pela parceria com a chamada Penny Press, uns tablóides de 1 centavo de dólar. A crescente classe de trabalhadores queria ter acesso a notícias e a Penny Press lhes deu isso: crimes, tragédias, escândalos, fofoca, notícias – mesmo as falsas. Nenhum desprezo aqui: em parte, a Internet cumpre esse papel 160 anos depois, dando vazão ao impulso de curiosidade das pessoas. Foi a Penny Press que capturou o significado da aniquilação da distância pelo Telégrafo e o passo seguinte: entendeu quão fácil passou a ser vender informação irrelevante.
Dois anos depois da invenção do Telégrafo, os jornais, para sobrevivência, passaram a depender, não da qualidade ou utilidade da notícia, mas em quanta notícia e de quão longe e de quão rápido ela chegava…
A tecnologia do Telégrafo mudava o paradigma da imprensa. Para pior, em geral.
A questão da Informação e os Founding Fathers: Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, Thomas Payne e Benjamin Franklin, quatro dos fundadores da democracia americana, não tinham nenhuma dúvida de que, sendo a informação dada ao cidadão, ele saberia como lidar com ela. Mesmo se a informação fosse falsa. E eles sabiam que havia informação falsa, tendenciosa e irrelevante. Eles sabiam que o homem podia ser ambicioso, vaidoso e mau. Ou seja, eles seguiam o iluminismo, mas tinham lá suas cautelas com aquela estória de que o homem é bom por natureza. Aliás, foi esse tipo de desconfiança que os levou a introduzir o sistema de checks and balances.
Os fundadores dos Estados Unidos achavam que o embate entre as informações – the Marketplace of Information –, como uma bateia, permitiria separar o trigo do joio, digo, a verdade da mentira. Eles assumiam ‘um mundo onde as informações e as ideias eram suficientemente ordenadas, de modo que o cidadão podia, pelo uso da razão, discernir a utilidade das coisas que liam e ouviam – afinal viviam na chamada Idade da Razão’. (Neil Postman, Technopoly, the surrender of culture to technology, Vintage Books, 1993).
Como, naquela época, a quantidade de informação ainda era bastante limitada e contextualizada, as noções errôneas do iluminismo – esse termo autolaudatório – não eram suficientes para invalidar o Marketplace of Information dos Founding Fathers.
Mas, aí chegou o Telégrafo…
Neil Postman, um gênio: Basicamente, usei como referência destas Notas livros de Neil Postman, um autor que, lamento, só descobri no outono de minha vida. Não que concorde com todas suas ideias, longe disso, mas reconheço a brilhante e sistemática agudeza de muitos de seus insights.
Quanto prazer intelectual ler Postman. No estilo, quanta graça. Quanta percuciência no entendimento dos usos da informação. Quanta finesse na percepção do papel da informação, da mídia, da TV, e do começo da Internet. Como ele apreendeu tudo logo, e como tão cedo nos deixou, falecendo aos 72 anos, em 2003, devido a um câncer de pulmão, deixando a esposa, com quem fora casado por 48 anos, e 3 filhos.
A gente consegue entender seu jeito simpático (sem melosidade) e erudito (sem empáfia) pelas entrevistas que deu, tão agradáveis e tão cheias de informação, e com tão fino humor. Fico imaginando se tivesse vivido mais um pouco, como decifraria, novo Édipo, a esfinge da Internet.
Menciono a seguir outro livro dele, mais espetacular ainda do que o Technopoly que citei acima, apesar de escrito uma década antes:
- Neil Postman. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Penguin Books; Anniversary edition 2005
O título é um programa de estudos. É um must read. Essa edição, que é a minha, tem prefácio de seu filho, Andrew Postman.
A Mudança da Informação – o Meio: Sempre houve a presunção, diz Postman, de uma estreita relação entre informação, razão e utilidade. Ora, esse nexo começou a ser quebrado pelo Telégrafo, em meados do séc. XIX.
Sim, antes do telégrafo, a informação se propagava apenas na velocidade do trem, uns 55 km/h (ou do cavalo, ou da diligência, ou do homem correndo, como Fidípides após a Batalha de Maratona). Sim, antes do telégrafo, a notícia que importava tinha um interesse local, uma utilidade particular, mesmo se fosse nacional, ou de outro país.
O Telégrafo removeu a distância como limitador da velocidade da informação. A geografia não mais circunscrevia a informação, que viajava mais rápido que o homem. Pela primeira vez na história, o transporte e a informação foram desatrelados.
Postman afirma que, nos EUA, o Telégrafo suprimiu as fronteiras entre os estados, juntou regiões, e unificou o próprio país. Isso foi bom. Mas tem um outro aspecto, arriscado para a sociedade: o contexto da informação começou a desaparecer. O contexto era o que fazia o conjunto de informações ser manejável pela mera razão. Antes, a cidade, as regiões muito próximas e seus personagens, clima, negócios e interesses, formavam o panorama e forneciam a chave interpretativa das notícias.
A Mudança da Informação – o Contexto: Talvez a observação mais relevante de Postman seja quando diz que a informação começou a não ter mais contexto: tornou-se algo de vida própria, independente de outras coisas. Ou seja, o valor da informação não precisava mais estar ligado a nenhuma função social ou política no processo de ação e decisão das pessoas.
O Telégrafo transformou a informação numa commodity, numa coisa que podia ser comprada e vendida sem relação com sua utilidade ou significado.
Mas o potencial do telégrafo para transformar a informação em commodity só ocorreu pela parceria com a chamada Penny Press, uns tablóides de 1 centavo de dólar, baratíssimos. A crescente classe de trabalhadores queria ter acesso a notícias e a Penny Press deu isso: crimes, tragédias, escândalos, fofoca, notícias – mesmo as falsas. Nenhum desprezo aqui: em parte, a Internet cumpre esse papel 160 anos depois, dando vazão ao impulso de curiosidade pequena das pessoas. Foi a Penny Press que capturou o significado da aniquilação da distância pelo Telégrafo e o passo seguinte: entendeu quão fácil passou a ser vender informação irrelevante.
Morse – What God has wrought: Em 24 de maio de 1844, Samuel Morse, em uma demonstração testemunhada por membros do Congresso americano, transmitiu as seguintes palavras, retiradas de uma versão inglesa da Bíblia (Números): What God has wrought – o que Deus fez. A mensagem, transmitida do Capitólio em Washington, foi recebida em uma estação de trem em Baltimore, e retransmitida de volta a Washington (ou seja, o texto foi recebido, decifrado e retransmitido de volta, para comprovar que o Telégrafo funcionava). Os congressistas ficaram maravilhados, mas quem percebeu o valor da invenção foi um jornal de Baltimore, o Patriot.
Sim, o primeiro uso conhecido do Telégrafo foi feito no dia seguinte à demonstração de Morse, usando a mesma linha construída por ele… O Patriot dava a notícia sobre uma votação na Câmara dos Deputados, em Washington, sobre a questão do Oregon (novos estados com ou sem escravos). O Patriot, claro, se orgulhava de sua façanha: podia imprimir notícias ‘up to two o’clock. E reconhecia que ‘This is indeed the annihilation of space’.
Dois anos depois, os jornais, para sobrevivência, passaram a depender, não da qualidade ou utilidade da notícia, mas em quanta notícia e de quão longe e de quão rápido ela chegava… Não é à toa que, dez anos após a demonstração de Morse, já havia mais de 30.000km de telégrafo com fio espalhados nos EUA.
A tecnologia mudava o paradigma da imprensa, o que traria, além de potenciais benefícios, consequências nefastas.