Caros,
A Internet nasceu e prosperou sobretudo por não ser regulada. Nem o acesso nem o conteúdo eram regulados. Certo. Mas a florzinha tenra tornou-se um baobá dominador.
A Internet tornou-se essencial, fez-se essencial. Com méritos. Tem elementos tão úteis que não daria para viver sem ela. Quem viver sem ela torna-se um eremita digital, no dizer de Tim Wu.
Na verdade, a Internet tornou-se tão essencial e tão abrangente, tão entranhada no dia-a-dia do cidadão, alterando tão profundamente todos os aspectos de nossas vidas, que os próprios pressupostos das bases do Direito se alteraram.
Na verdade, a Internet alterou a eficácia dos instrumentos – constituição e leis – em que o legado de nossa civilização se cristalizava. P. ex., na questão da Liberdade de Expressão, o pressuposto era que a ameaça vinha do Estado, do Congresso, pelo poder que detinham. Não mais. A ameaça pode agora vir das Big Techs.
Nestas Notas examinamos um caso em que as bases do Direito Constitucional foram abaladas pela Internet: o caso da Liberdade na Constituição americana.
A Liberdade é o maior fundamento dos Estados Unidos. Por isso o First Amendment reza:
Congress shall make no … abridging the freedom of speech, or of the press…
Esse mandamento constitucional foi eficaz até o advento da Internet. Depois, tudo aquilo em que se baseava a lei antiga perdeu seu prumo.
Congress shall make no law contra as liberdades e proteções da Primeira Emenda. E daí? A Internet faz as leis sozinha. Em muitos aspectos, a Internet tem mais poder do que o Congresso.
Acesso à Internet – regular ou não regular? O verso cortante de Shakespeare – To be, or not to be, that is the question – é aquele das grandes encruzilhadas da vida. Das decisões fundamentais.
Aqui, agora, com respeito ao acesso à Internet, a questão, transcendental, é: regular ou não regular. Claro que deve haver alguma regulação para a Internet. A Internet não está acima da lei, nem do Estado, não deve poder fazer o que quiser, como quiser quando quiser, se quiser. A Internet não pode estar acima, nem ter privilégios superiores aos de outros meios de comunicação sujeitos a leis nacionais. Mas a regulação tem de estar basicamente sobre as grandes empresas de Internet, e não sobre as prestadoras de serviços de telecom. Aquelas são como o bode na sala, o problema real; estas, como o bode expiatório, a culpa desviada.
Bem, os EUA não regulavam a Internet; depois regularam a telecomunicação de acesso à Internet como Common Carrier. Voltaram a não regular, e agora regularam de novo apenas a telecomunicação de acesso como Common Carrier. A bateria antiaérea baixou o nível, mirou alvos ao rés-do-chão, mas o problema está mais acima. O Brasil nunca regulou: acesso à Internet aqui não é regulado como serviço público de telecomunicação. Aliás, serviço público, propriamente, está sendo extinto no Brasil com o fim das concessões de STFC. Mas parece que a plantação de bananas tem aumentado lá para o norte.
Tom Jobim disse, dos Estados Unidos: “A América é boa, mas é uma porcaria; o Brasil é uma porcaria, mas é bom”. Troquei uma palavra, para não conspurcar a susceptibilidade dos amigos. Nos últimos tempos, a asserção de Jobim soa cada vez mais plausível.
O Acesso à Internet – preâmbulo: A Internet nasceu e prosperou sobretudo por não ser regulada. Nem o acesso nem o conteúdo eram regulados. Certo. Mas a florzinha tenra tornou-se um baobá dominador. A Internet tornou-se tão poderosa que é ela agora quem diz como deve ser tratada, ainda que ela possa destratar outros.
A Internet, tornou-se instrumento essencial. Com méritos. Tem elementos tão úteis que não daria para viver sem ela. Quem viver sem ela torna-se um eremita digital, no dizer de Tim Wu. Colateralmente, a Internet exacerbou o bate papo, a diversão, a exposição, a auto-exposição, o disse-me-disse, a maledicência, e a futilidade assumiu um papel preponderante no cotidiano.
O Acesso à Internet – história: Quando Tim Wu inventou o conceito de Neutralidade de Rede, o mundo era outro, e outro era o conceito. A Internet era coisa pequena, ainda que a derivada do crescimento fosse grande. Ninguém conseguia ver o futuro dez anos à frente. O temor, então, era o de que as prestadoras de telecom utilizassem seu controle do acesso para discriminar conteúdo. Efetivamente, dez anos depois, o conteúdo passou a ser discriminado, mas não pelas prestadoras: o vilão era outro. Havia começado a era da censura em massa, por decisão privada das chamadas Big Techs. Essa era persiste até hoje. Até por ser conveniente a governos e segmentos da sociedade, que conseguem usar a Internet como proxy.
Na verdade, a Internet alterou a eficácia dos instrumentos – constituição e leis – em que o legado de nossa civilização se cristalizava. P. ex., na questão da Liberdade de Expressão, o pressuposto era que a ameaça vinha do Estado, do Congresso, pelo poder que detinham. Não mais. A ameaça vem das Big Techs, mais poderosas do que o Congresso, em muitos aspectos.
Contornando a Primeira Emenda (1): A Liberdade é o maior fundamento dos Estados Unidos. Reza o First Amendment:
Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.
Esse mandamento foi eficaz até o advento da Internet. Com a Internet rápida, tudo mudou; tudo aquilo em que se baseava a lei antiga perdeu seu prumo. Surgiram atalhos inicialmente; depois os atalhos se tornaram avenidas e autoestradas.
Congress shall make no law contra as liberdades e proteções da Primeira Emenda. E daí? A Internet faz as leis sozinha.
Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof. O Estado não se mete na religião, não tem uma religião oficial (não discutimos aqui o mérito desse e de outros princípios da Primeira Emenda). E daí? Em geral, a Internet promove a religião do paganismo, e é hostil à Religião. Zeus, não Deus. As Big Techs têm poderes olímpicos.
Congress shall make no law … abridging the freedom of speech, or of the press. O Congresso não aprova leis limitando a Liberdade de Expressão ou de Imprensa. E daí? Isso era proteção suficiente para proteger essas liberdades. Não mais. A Internet tornou-se, de longe, o maior limitador da liberdade de expressão e de imprensa em toda a história. Claro, para proteger o coitadinho do cidadão que não tem discernimento para entender as coisas.
Contornando a Primeira Emenda (2): Congress shall make no law … abridging… the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances. E daí? Hoje, as pessoas se reúnem na Internet, grupos, multidões, milhares, milhões de pessoas. Mas esses grupos podem ser desfeitos a qualquer momento pelos donos da Internet. O Congresso, mesmo se quisesse, não conseguiria tamanho controle. O Congresso não teria como vedar o acesso a todas as praças para as pessoas se reunirem. Mas a Internet tem o poder de criar a praça, de esvaziar a praça, e mesmo de fazer a praça sumir.
E pedir, dirigir petições é uma coisa tão simples, tão natural, o mínimo que uma pessoa, ou um grupo de pessoas ofendidas, atribuladas, passando necessidade, pode fazer. Pois bem, a Internet pode impedir até mesmo que uma pessoa arrecade recursos para algo que julga necessário e justo. A Internet, sozinha, pode julgar que essa pessoa é má, que sua causa é má, ou suspeita, e bloquear o acesso a fontes de financiamento ou de uma mera vaquinha.