Caros,
Seguimos, nestas Notas, discorrendo sobre a imprensa, o livro, e a televisão, na espetacular visão de Neil Postman em Amusing Ourselves to Death (Penguin Books, 1985).
Em uma cultura puramente oral, sempre se valoriza muito o poder de memorizar, pois onde não há palavras escritas, a mente humana deve funcionar como uma biblioteca móvel. Em uma cultura baseada no livro impresso, a memorização de um poema, um cardápio, uma lei, ou algo assim, tem um certo charme, mas quase sempre é funcionalmente irrelevante e certamente não é um sinal de alta inteligência.
Ao ler um livro a gente é obrigado a permanecer mais ou menos imóvel por um tempo bastante longo. A gente não pode prestar atenção à forma das letras na página, mas ver através das letras, por assim dizer, para poder ir diretamente ao significado das palavras que elas formam.
A gente tem de saber ser “imune à eloquência” do autor, ser capaz de distinguir entre o prazer sensual, ou charme, ou tom insinuante (se houver) das palavras, – tem de chegar à lógica de seu argumento. Há muitos escritores que enfeitiçam o leitor pela forma, mesmo quando a substância é errônea. Neil Postman diz que a gente deve, pois, saber a diferença entre uma piada e um argumento.
A inteligência implica que se possa viver confortavelmente sem imagens, num campo de conceitos e generalizações.
Um novo meio muda a estrutura do discurso, encorajando certos usos do intelecto, favorecendo certas definições de inteligência e sabedoria e exigindo certo tipo de conteúdo. Nesse ponto, Postman afirma que a epistemologia criada pela televisão não só é inferior à epistemologia da imprensa, mas é perigosa e absurda.
Engana-se quem acredita que a televisão e a imprensa coexistem, pois a coexistência implica paridade. Aqui não há paridade. A imprensa é agora apenas uma epistemologia residual, e permanecerá assim, auxiliada até certo ponto pelo computador e jornais e revistas que são feitos para parecer telas de televisão.
Chesterton e a oralidade, uma digressão: Nas Notas da semana passada tratamos das diferenças entre a expressão oral e a escrita. Neil Postman, em Amusing Ourselves to Death (Penguin Books, 1985), nota esta ambivalência no ambiente de um tribunal: “Por um lado, espera-se que os jurados ouçam a verdade, ou seu oposto, não que a leiam. Por outro, a verdade estaria na lei que legisladores escreveram”. Existe uma citação de Chesterton, brilhante como sempre, sobre o júri que ilustra bem essa dicotomia:
“Nossa civilização decidiu, e decidiu corretamente, que determinar a culpa ou a inocência dos homens é algo importante demais para ser confiado a especialistas. Sobre esse assunto terrível, melhor perguntar a homens que não conhecem muito de leis (como eu), mas que podem sentir a grandiosidade de um júri (como eu). Quando a civilização quer catalogar uma biblioteca, ou descobrir o sistema solar, ou qualquer ninharia desse tipo, ela usa seus especialistas. Mas quando deseja que algo realmente sério seja feito, ela reúne doze homens comuns. A mesma coisa foi feita, se bem me lembro, pelo Fundador do Cristianismo”.
As consequências da relação entre credibilidade e meio de transmissão I: Para Postman, uma vez que a inteligência é definida principalmente como a capacidade de apreender a verdade das coisas, segue-se que o que uma cultura entende por inteligência depende das formas de comunicação. Em uma cultura puramente oral, a inteligência é frequentemente associada a um talento aforístico, ou seja, ao poder de criar ditos compactos de ampla aplicabilidade. O Rei Salomão conhecia três mil provérbios. Em uma cultura puramente oral, sempre se valoriza muito o poder de memorizar, pois onde não há palavras escritas, a mente humana deve funcionar como uma biblioteca móvel. Em uma cultura baseada no livro impresso, a memorização de um poema, um cardápio, uma lei ou outra coisa assim parece encantadora, mas quase sempre é funcionalmente irrelevante e certamente não é considerada um sinal de alta inteligência.
As consequências da relação entre credibilidade e meio de transmissão – II: Postman descreve o que ele chama de caráter geral da “inteligência impressa”, ou seja, aquela baseada no livro:
Imagine que você está lendo um livro. Você é obrigado, em primeiro lugar, a permanecer mais ou menos imóvel por um tempo bastante longo. Controlar seu corpo é, no entanto, apenas um requisito mínimo. Você também deve ter aprendido a não prestar atenção à forma das letras na página. Você deve ver através das letras, por assim dizer, para poder ir diretamente ao significado das palavras que formam. Se você estiver preocupado com a forma das letras, será um leitor intoleravelmente ineficaz, provavelmente considerado estúpido. Para chegar a significados sem distrações estéticas, você é obrigado a assumir uma atitude de distanciamento e objetividade. Isso inclui você se imbuir, como disse Bertrand Russell, de “imunidade à eloquência”, significando que você tem de ser capaz de distinguir entre o prazer sensual, ou charme, ou tom insinuante das palavras, e a lógica de seu argumento. Mas, ao mesmo tempo, você deve ser capaz de discernir pelo tom da linguagem qual é a atitude do autor em relação ao assunto. Você deve, em outras palavras, saber a diferença entre uma piada e um argumento. E ao julgar a qualidade de um argumento, você deve ser capaz de fazer várias coisas ao mesmo tempo, inclusive adiar um veredicto até que todo o argumento esteja concluído; manter em mente as perguntas até determinar onde, quando ou se o texto as responde, e trazer para o texto toda a sua experiência como contra-argumento ao que está sendo proposto. E ao se preparar para tudo isso, você deve ter se despojado da crença de que as palavras são mágicas e, acima de tudo, aprendido a negociar no mundo das abstrações, pois há muito poucas frases em um livro argumentativo que exigem que você evoque imagens concretas. Em uma cultura impressa, estamos propensos a dizer a pessoas que não são inteligentes que devemos “desenhar” para que elas possam entender. A inteligência implica que se possa viver confortavelmente sem imagens, num campo de conceitos e generalizações. Ser capaz de fazer todas essas coisas, e mais, constitui uma definição primária de inteligência em uma cultura cujas noções de verdade são organizadas em torno da palavra impressa.
O que o argumento de Postman não é: Postman afirma que não pretende, em momento algum, afirmar que mudanças na mídia provocam mudanças na estrutura da mente das pessoas ou mudanças em suas capacidades cognitivas. Portanto, o seu ponto não é discutir a possibilidade de que as pessoas em uma cultura oral sejam menos desenvolvidas intelectualmente do que as pessoas que escrevem, ou que as pessoas da “televisão” sejam menos desenvolvidas intelectualmente do que qualquer outra. O argumento dele é que um novo meio muda a estrutura do discurso; o novo meio encoraja certos usos do intelecto, favorecendo certas definições de inteligência e sabedoria e exigindo certo tipo de conteúdo. Nesse ponto, sim, ele afirma que a epistemologia criada pela televisão não só é inferior a uma epistemologia impressa, mas chega a ser perigosa e absurda.
Como ocorre a mudança de uma cultura para outra: Enquanto algumas mídias antigas, de fato, desaparecem (por exemplo, escrita pictográfica e manuscritos com iluminuras) e, com elas, as instituições e hábitos cognitivos que as favoreceram, outras formas de comunicação sempre permanecerão. A fala, por exemplo, e a escrita. Assim, permanece uma certa contestação ao discurso da Televisão (meio novo) pelo uso de meios antigos.
É como as mudanças no meio ambiente; elas são graduais no início, e então, de uma só vez, uma massa crítica é alcançada. Um rio que foi lentamente poluído de repente se torna tóxico; a maioria dos peixes perece; nadar torna-se um perigo para a saúde. Mas, mesmo assim, o rio pode parecer o mesmo e ainda é possível fazer um passeio de barco nele. Em outras palavras, mesmo quando a vida lhe foi tirada, o rio não desaparece, nem acabam todos os seus usos, mas seu valor foi seriamente diminuído e sua condição degradada terá efeitos danosos em todo o entorno. É assim também com a televisão. Postman disse [em 1985!…] que somos uma cultura cuja informação, ideias e epistemologia são moldadas pela televisão, não pela palavra impressa. Com certeza, ainda existem leitores e muitos livros publicados, mas os usos da imprensa e da leitura não são os mesmos de antigamente; nem mesmo nas escolas, as últimas instituições onde o livro impresso era considerado invencível.
Engana-se quem acredita que a televisão e a imprensa coexistem, pois a coexistência implica paridade. Aqui não há paridade. A imprensa é agora apenas uma epistemologia residual, e permanecerá assim, auxiliada até certo ponto pelo computador e jornais e revistas que são feitos para parecer telas de televisão. Como os peixes que sobrevivem a um rio tóxico e os barqueiros que nele navegam, ainda habitam entre coisas cujo sentido é amplamente influenciado por águas mais antigas e claras.