Caros,
A FCC invadiu prerrogativas do Congresso americano, um pretexto para usar a autoridade que fora dada às Agências Reguladoras pela Doutrina Chevron.
Diante de abusos reiterados dessas agências, a Suprema Corte, em Loper Bright Enterprises v. Raimondo (2024) pôs fim à deferência obrigatória à interpretação de uma agência em pontos ambíguos ou silenciosos da lei. A deferência se baseava na boa-fé: o perito (a agência regidora) agiria como perito , usaria sua perícia em decisões técnicas para evitar demandas judiciais prolongadas. As agências americanas ganharam a deferência da Chevron para fazer política partidária.
Para evitar o caos administrativo, embora tenhamos rejeitado a Doutrina Chevron, que existe há quatro décadas, a Suprema Corte garantiu que “não reexaminaremos os casos anteriores que se basearam na Doutrina Chevron”. Ou seja, o que foi considerado legal, não será invalidado.
Assisto a tudo isso com profundo sentimento de perda. Durante algumas décadas, estudei regulação nos documentos da FCC. Não havia livros que cobrissem o tema de forma tão abrangente, atualizado, interessante. E isso foi verdade para muitos estudiosos de telecomunicações do mundo agora.
Efetivamente, a melhor fonte de estudos para questões de telecomunicações, radiodifusão e, depois, de acesso à Internet, durante décadas, foram os documentos da FCC e as decisões judiciais americanas sobre o tema. A FCC perdeu muito de sua relevância nas inúmeras e radicais mudanças de opinião sobre o mesmo texto da Lei.
A FCC perdeu sua independência e sua substituição.
Deixou muitos órfãos intelectuais.
O Chief Judge Sutton vai além: Quando a Corte de Apelações suspendeu a aplicação da regulação da FCC classificando o acesso á Internet como Common Carrier, o Chief Judge Sutton, escrevendo separadamente, afirmou que teria concedido a suspensão da aplicação da regulamentação da FCC também por uma outra razão adicional. Sutton achou que “[a] melhor leitura da Lei, e aquela em vigor durante todos os últimos vinte e oito anos, exceto três anos, mostra que o Congresso provavelmente não via os provedores de banda larga como Common Carriers […]”.
De toda forma, o Sexto Circuito, em 2 de janeiro de 2024 assim decidiu: “Pelas razões que se seguem, consideramos que os Provedores de Serviços de Internet de Banda Larga oferecem um Serviço de Informação e que, além disso, a banda larga móvel é um serviço móvel privado. Portanto, a FCC excedeu a sua autoridade estatutária ao emitir a regulação intitulada IN THE MATTER OF SAFEGUARDING AND SECURING THE OPEN INTERNET.
A Corte e o bom senso. E o oxímoro: O Telecommunications Act de 1996 foi muito claro em sua intenção de promover a Internet. A interpretação da FCC de que o acesso à Internet seja regulado como Common Carrier (similar a uma concessão no Brasil) não era algo simples de explicar.
Na Stay Order, o Sexto Circuito observou – e isso era mais que um aviso: “Só um Congresso contraditório em si mesmo reforçaria a desregulamentação como o melhor meio de promover a economia da Internet e depois trataria os fornecedores de banda larga como common carriers fortemente regulados”.
Não há resposta possível a uma observação desse tipo.
E o título da regulamentação da FCC de 22.5.2024 fica até engraçado: IN THE MATTER OF SAFEGUARDING AND SECURING THE OPEN INTERNET, DECLARATORY RULING, ORDER, REPORT AND ORDER, AND ORDER ON RECONSIDERATION.
Como “safeguarding”, como “securing”? O título é um oxímoro.
O entendimento da Corte de Apelações: Diz o Sexto Circuito: “[O] cerne da Internet e dos serviços associados é a capacidade de ‘recuperar’ e ‘utilizar’ informações.”
A questão é, pois, se o acesso à Internet constitui apenas um canal para transmissão de dados (o chamado “dumb pipe”) e, portanto, oferecem aos consumidores um serviço de telecomunicações (como assevera, agora, a FCC, após ter sustentado o contrário); ou se, em vez disso, os Provedores de Serviços de Internet de Banda Larga provêem aos consumidores a capacidade de adquirir, armazenar e utilizar dados – e assim oferecer aos consumidores um Serviço de Informação. A Corte de Apelações do Sexto Circuito decidiu que esta última é a melhor leitura da Lei.
A decisão diante da revogação de Chevron: Em 2024, Loper Bright Enterprises v. Raimondo pôs fim à deferência obrigatória à interpretação de uma agência em pontos ambíguos ou silentes da lei. Ao anular a Doutrina Chevron, a Suprema Corte americana considerou (após 40 anos de aplicação da Doutrina Chevron) que tal delegação implícita é inconsistente com a Lei de Procedimentos Administrativos (Administrative Procedure Act), a qual manda que os tribunais decidam todas as questões legais relevantes e interpretem as disposições legais. Agora, “os tribunais devem exercer o seu julgamento independente ao decidir se uma agência agiu dentro da sua autoridade estatutária”, “usando todas as ferramentas à sua disposição para determinar a melhor leitura do estatuto e resolver a ambiguidade”. Ou seja, os tribunais não precisavam mais ter aquela grande deferência aos órgãos reguladores na interpretação da lei.
Para evitar caos administrativo, embora tenha rejeitado a Doutrina Chevron, que existe há quatro décadas, a Suprema Corte garantiu que “não reexaminaremos cases anteriores que se basearam na Doutrina Chevron”. Ou seja, o que foi considerado legal, não será invalidado.
Separando o meio do fim: A FCC tentou argumentar que na telefonia fixa comutada (que é regulada como Common Carrier), p.ex., uma parte “vai buscar a voz da outra”, e, ainda assim, o serviço é tratado como Common Carrier. Porém, argumenta a Corte de Apelações do Sexto Circuito, o serviço telefônico meramente transmite o que um interlocutor fala. Nenhum dos dois lados da chamada tem a capability of “retrieving””information”no sentido do Telecommunications Act de 1996.
Por fim, a FCC, pateticamente, tentou assimilar a numeração da telefonia aos endereços IP, insinuando que se um serviço (telefonia) era Common Carrier, o outro (acesso à Internet) também deveria ser… A Corte de Apelações sorriu, e… não aceitou.
A FCC não levou em conta os fatos; os fatos desabaram sobre a FCC.
Lições: Durante algumas décadas, estudei regulação nos documentos da FCC. Não havia livros que cobrissem o tema de forma tão abrangente, atualizada, interessante. E isso foi verdade para muitos estudiosos de telecomunicação mundo afora.
Efetivamente, a melhor fonte de estudos para assuntos de telecomunicações, radiodifusão e, depois, de acesso à Internet, durante décadas, eram os documentos da FCC e as decisões judiciais sobre o tema. A FCC perdeu muito de sua relevância nas inúmeras e radicais mudanças de opinião sobre o mesmo texto da Lei. Perdeu sua independência e sua credibilidade.
Assisto a tudo isso com profundo sentimento de perda. E consciente de que restam muitos órfãos intelectuais.