Notas & Comentários – 04-11-2022

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Redes soviéticas – Stalin: Niall Ferguson, num dos capítulos de The Square and The Tower, sua extraordinária obra sobre redes de relacionamento, descreve um Brief Encounter entre Isaiah Berlin e Anna Akhmatova. Mas, antes do encontro, vamos dar uma olhada no ambiente da época.

Lenin tornou Stalin Secretário Geral do Partido Comunista – o que representava um poder extraordinário. Morto Lenin, Stalin o sucede, e passa a dispor, de fato, de um poder praticamente ilimitado durante 30 anos. Assim, pode-se dizer que a Rede de Relacionamentos de Stalin era ele mesmo: ele não precisava de rede formal, pois todos se submetiam a ele, na rede ou fora dela. Stalin era, ao mesmo tempo, the Square and the Tower.

E, nos sangrentos expurgos dos anos 30, essa submissão se exprimia com a vítima admitindo publicamente os crimes que lhe eram imputados, mesmo com a consciência absoluta de inocência: “o Partido não podia errar; se diz que eu cometi um crime, mesmo não o tendo cometido, cometi”. E era, assim, executado.

Stalin tinha uma brincadeira que aterrorizava o alvo da brincadeira: “você ainda não foi preso?”.

Próximo a Stalin – Rede de Relacionamentos impossível: Os Molotov e os Stalin dividiam um apartamento em Moscou, e Zhemchuzhina, esposa de Molotov, se tornou muito amiga de Nadezhda Alliluyeva, esposa de Stalin. Quando, em 1932, Stalin tratou grosseiramente sua esposa diante de amigos, Zhemchuzhina acompanhou Alliluyeva, quando esta, magoada, se retirou da sala. No dia seguinte, Alliluyeva apareceu morta; se suicidara com um tiro de pistola. Stalin ficou com uma raiva extrema de Zhemchuzhina e começou a persegui-la. Zhemchuzhina foi perdendo posições na burocracia partidária e acabou presa por traição, em 1948, e só foi liberada quando Stalin morreu, em 1953. O marido de Zhemchuzhina, Vyacheslav Molotov, era o poderoso Ministro do Exterior de Stalin: mas Molotov nunca reclamou, nunca defendeu a esposa, nunca deu um pio – nem antes, nem depois da morte de Stalin.

Ao ser liberada da prisão, Polina Semyonovna Zhemchuzhina perguntou sobre Stalin. Quando disseram que morrera alguns dias antes, ela desmaiou. Zhemchuzhina disse à filha de Stalin, Svetlana Alliluyeva, que seu pai era um gênio… Um chefe comunista não pode errar.

Redes soviéticas – difícil, mesmo longe de Stalin: No Ocidente em geral, as redes de relacionamento acumuladas por servidores do Estado podiam e podem ser usadas, após aposentadoria do serviço público, como uma espécie de capital para o mundo privado. Na União Soviética, não.

Uma característica que perdurou até mesmo depois da morte de Stalin foi a destruição sistemática de qualquer rede de relacionamentos privada.

A situação, o regime, o modo de vida na União Soviética podem ser aferidos através de muitos livros. Em especial, vale muito a pena ler os livros do grande historiador Stephen Kotkin, principalmente sua monumental Trilogia sobre Stalin, pela Penguin Books (o último volume ainda não saiu), uma das grandes biografias da história:

  • Stalin: Paradoxes of Power, 1878–1928 (2014)
  • Stalin, Waiting for Hitler, 1928–1941 (2017)

Anna Akhmatova e Isaiah Berlin: O Brief Encounter entre Isaiah Berlin e Anna Akhmatova ocorreu em Leningrado, logo após o fim da II Guerra Mundial, nos albores da Guerra Fria. O Regime Soviético é uma ilustração da Torre no livro de Ferguson, completamente hierárquico, opaco, inamovível, o totalitarismo em sua essência. E não existe a Praça: não há o espaço público da sociedade.

Para Berlin, o filósofo de Oxford, o grande escritor que não gostava de escrever, e para a poetisa de Leningrado, Akhmatova, foi um encontro privado, no apartamento dela, que gerou um imenso prazer literário, puramente intelectual e casto. Nada houve de político. Mas Stalin achou ruim, e usou o fato para perseguir a poetisa e sua família. Sempre houve uma suspeição contra ela… Além disso Isaiah Berlin era um diplomata britânico, logo, um espião… Afinal, a família dele deixou a União Soviética em 1920…

Não. Dois intelectuais, um soviético e um britânico, não podiam se encontrar, mesmo privadamente, para uma conversa puramente literária. Era perigoso. Akhmatova pagou caro.

Akhmatova – e seus tormentos: Anna Akhmatova era uma poetisa russa celebrada mundialmente, mas aí veio a Revolução de 1917…

O primeiro marido de Anna, Nikolay Gumilev, um escritor patriota romântico, foi executado em 1921 por alegadas atividades antissoviéticas. Em 1925, os livros da poetisa deixaram de ser publicados, por ordem superior. Dez anos depois, seu filho e seu terceiro marido foram presos. Orientada por Boris Pasternak (o autor do célebre livro Doutor Jivago), Akhmatova fez um pedido desesperado a Stalin, que, surpreendentemente, os libertou. Mas três anos depois, seu filho foi preso de novo e mandado para um campo de concentração no frio Ártico. Com tudo isso, porém, ela jamais admitiu sequer pensar em deixar seu país; morreria nele, quaisquer que fossem as consequências. E vale lembrar a dureza da vida em Leningrado na II Guerra Mundial: os alemães cercaram a cidade de 1941 a 1944, por quase 900 dias; morreram mais de 1.500.000 mil pessoas durante o cerco (uma grande quantidade, de fome). Ou seja, só em Leningrado, morreram mais do que a soma de todos os americanos e ingleses mortos na II Guerra Mundial inteira. Para Akhmatova, Leningrado era o túmulo de seus amigos, de sua família, de seus conhecidos.

Akhmatova – ela existia: Isaiah Berlin foi o segundo estrangeiro a visitar Akhmatova em quase 30 anos; na verdade, ficou surpreso de saber que ela ainda existia: não havia notícias sobre ela. No encontro, Akhmatova chegou a recitar versos do poema Don Juan, de Byron. Quem gosta de poesia sabe da alegria de ouvir e de recitar belos versos. Falaram de Chekhov, Tolstói, Dostoievsky, Pushkin… A conversa atravessou a noite e foi até tarde na manhã seguinte. Akhmatova, Pasternak, desconheciam por completo o que se passava na vida cultural do Ocidente.

Dias depois, o Serviço Secreto Soviético já instalara microfones pela casa de Akhmatova.

Isaiah Berlin se encontrou com Anna Akhmatova uma segunda vez, em 5 de janeiro de 1946, antes de deixar a Rússia. Mas quando retornou à União Soviética, em 1956, Akhmatova mandou um recado, via Pasternak, que não queria se encontrar com ele, por medo de que seu filho, recém liberado da prisão, pudesse sofrer…

Conclui Niall Ferguson: num regime totalitário, mesmo experiências pessoais ultrapassam os limites do aceitável.