Notas & Comentários – 21-03-2025

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Ohio Telecom v. FCC É um case para ficar na história. Na história da má regulação, na história da má política, na história dos abusos, e na história da irrazoabilidade. OHIO TELECOM ASSOCIATION, et al. v FCC foi decidido agora, em 2.1.2025.
(https://www.opn.ca6.uscourts.gov/opinions.pdf/25a0002p-06.pdf )

O Tribunal de Apelações do Sexto Circuito dos Estados Unidos desautorizou a regulação que a FCC aprovara, em maio de 2024, sobre Neutralidade de Rede. O nome da Order da FCC, em si, já parecia uma mistificação: “IN THE MATTER OF SAFEGUARDING AND SECURING THE OPEN INTERNET”… Safeguarding? Really?

O Tribunal considerou que, sob o Telecommunications Act de 1996, os ISPs de banda larga oferecem um “Serviço de Informação”, e não um Serviço de Telecomunicações. Os ISPs possibilitam recuperar e utilizar informações através de telecomunicações, o que se enquadra na definição de Serviço de Informação. O Tribunal de Apelações também concluiu que a interpretação da FCC era inconsistente tanto com a simples linguagem da Lei como com seu contexto histórico.

Esse decisão constitui uma catástrofe para a FCC. E para o modelo de agências. E para o respeito às agências reguladoras.

 

EUA – o fim da Deferência Legal às Agências Reguladoras: Durante 40 anos, e até há pouco tempo, mesmo quando a lei era silente ou não muito clara, os tribunais eram obrigados a aceitar a interpretação do órgão regulador, por deferência à sua expertise. Ou seja, o Regulador podia interpolar, preencher lacunas da Lei, e, se isso fosse razoável, os Tribunais tinham de aceitar, mesmo que o juiz considerasse que ele, juiz, tinha uma interpretação melhor.

As Agências Reguladoras americanas conseguiram perder esse imenso privilégio, por repetidos abusos. Agora, o abuso foi da FCC.

Vale a pena recordar um pouco as coisas.

 

A Doutrina da Boa-Fé: A chamada Doutrina Chevron era razoável, tinha uma boa intenção, confiava na especialização, na expertise das agências reguladoras. Só que a Doutrina pressupunha que as
g agência reguladoras se limitariam ao seu mandato. Mas a política é a ciência de distorcer querendo aparentar zelo.

Como muita coisa na vida, a liberalidade degenerou em abuso. E o abuso resultou na quebra da confiança e na revogação da liberalidade, desmoralizando o instituto da Agência Reguladora.

Quando a Agência Reguladora toma um posicionamento mais político do que técnico, o regulado sofre, torna-se arredio e, se ainda puder, vai embora ou muda de ramo.

 

O que era a Doutrina Chevron: Era um importante princípio do direito administrativo americano, estabelecido pelo case Chevron v. Natural Resources Defense Council (1984), onde a Suprema Corte dos Estados Unidos definiu um teste de dois passos para avaliar a interpretação de agências reguladoras sobre leis federais.

Os dois passos fundamentais da Doutrina Chevron são:

  1.  O tribunal deve determinar se o Congresso abordou diretamente, na Lei, a questão específica em análise. Se a intenção do Congresso é clara e inequívoca, tanto o Tribunal quanto a Agência devem seguir essa interpretação.
  2. Se, porém, a lei é ambígua ou silente sobre uma questão específica, o tribunal deve aceitar a interpretação da agência, desde que seja razoável, mesmo que não seja necessariamente a melhor interpretação possível no julgamento do juiz.

A importância desta Doutrina reside em vários aspectos:

  • Estabelece um equilíbrio entre os poderes, reconhecendo a expertise técnica das agências reguladoras;
  • Proporciona agilidade, previsibilidade e estabilidade na interpretação das normas administrativas;
  • Reduz a interferência judicial em questões técnicas complexas;
  • Permite flexibilidade na implementação de políticas públicas.

Como é possível que as agências reguladoras americanas tenham perdido tamanha deferência legal?
Isso nos faz lembrar aquele primeiro casal que estava no Paraíso, com tudo à disposição, a vida eterna à frente, a natureza dócil, os animais mansos… Só havia uma única proibição. E o casal transgrediu essa única proibição.

 

O abuso destrói: A ideia da Chevron Doctrine era que a Agência preenchesse certas pequenas omissões, ou silêncios da lei, de forma a tornar suave sua aplicação. Não que a Agência começasse a criar pedaços de lei, ou estabelecesse uma nova lei, muito menos ir contra a lei como se a estivesse apenas interpretando. A “expertise” de uma agência não podia deformar a lei.

A expertise técnica não pode tornar-se uma esperteza política.

 

O abuso gera inconsistência: A FCC mudou pelo menos quatro vezes sua interpretação da lei, no mesmo assunto de Net Neutrality. Que expertise é essa? A expertise não pode levar a resultados disparatados. A química não pode ser alquimia. A medicina é a esperança de vida: não pode ser a expectativa da morte. Como explicar que, diante do mesmo pano de fundo, a FCC inverteu (não apenas alterou, mas inverteu) 4 vezes sua decisão sobre o tema Net Neutrality?

Órgão regulador que se preze executa políticas públicas, mas não origina política. E não devia se subordinar a politicagem.