Caros,
A Igreja nunca se preocupou com a teoria de Ptolomeu ou a de Copérnico. Nenhum dos dois sistemas tinha a menor possibilidade de existência física, com aquela multidão de ciclos e epiciclos e até epiciclos sobre epiciclos. Ou seja, não era possível que um planeta girasse em torno de um ponto que, por sua vez, girava em torno do Sol, ou de um ponto excêntrico próximo ao Sol… Era muita acochambração, com perdão da vulgaridade. Os Sistemas de Ptolomeu e de Copérnico eram meramente instrumentos matemáticos, um modelo, para fenômenos astronômicos observados, nada mais. Não havia sobreposição, nem invasão, nem desdouro, nem contradição entre esses modelos e a Teologia. Tanto que o livro de Copérnico fora publicado havia já mais de 70 anos, e a Igreja jamais o proibiu, nem tomou nenhuma medida para proibir.
Os dominicanos do Convento de San Marco e o padre Caccini, da igreja de Santa Maria Novella, escandalizados com a Carta à Grã-Duquesa Cristina, fizeram denúncias à Inquisição. As duas denúncias foram… arquivadas.
Quem conseguiu, por presunção, por uma autoestima extremada, por um narcisismo astronômico, quem conseguiu acender o fogo da controvérsia foi Galileu. E causou uma confusão tão grande, entre Igreja e ciência, que levou 350 anos para ser mais ou menos apaziguada.
Lorini lê a Carta a Castelli: Como dissemos várias vezes, o livro e o sistema de Copérnico não causavam nenhum problema para aIgreja. Quem criou o problema foi a inabilidade de Galileu em lidar com críticas. Vamos retomar essa história.
Quando Frei Niccolò Lorini leu a Carta a Castelli, de Galileu, ficou profundamente chocado. Ele, que dissera antes não ter tempo para se preocupar com esse tal de “Ipernicus” (referindo-se a Copernicus), ficou chocado com a Carta a Castelli. Lorini fez uma cópia da carta e levou para discussão com seus confrades no histórico convento dominicano de São Marcos, em Florença. O clima estava tão tenso que os frades dominicanos resolveram encaminhar a carta à Inquisição, para que considerasse o problema. A inquisição tomou a decisão de… arquivar o processo.
A caminho das denúncias: A Carta a Castelli e sua edição completa, que viria a ser a Carta à Grã-Duquesa Cristina, ia trazer desgostos a Galileu Galilei por muito tempo.
Na Bíblia, nos Atos dos Apóstolos (1:11), há a seguinte passagem: “Homens Galileus, por que ficais aí a olhar para o céu?“. Foi essa passagem que um monge dominicano, Tommaso Caccini, usou para atacar Galileu num sermão proferido na extraordinária igreja de sua ordem, a Santa Maria Novella, em Florença. Corria o ano de 1614. Ele escolheu esse versículo que dava um trocadilho com o nome de Galileu: “Homens Galileus”. Galileu, sempre muito cioso de sua imagem, imediatamente se queixou ao superior de Caccini, Frei Luigi Maraffi, que, respondendo a Galileu, mostrou enfado, por ter de ficar respondendo bobagens que seus frades dominicanos eventualmente falam. Isso mostra o abismo de percepção sobre questões de ciência em geral, e, em particular, sobre questões de astronomia, entre a alta hierarquia da Igreja e o baixo clero.
Caccini não desistiu. Um mês após o arquivamento da denúncia [de Lorini] Caccini pediu à Inquisição em Roma para ser ouvido: queria exonerar sua consciência contando o que sabia sobre Galileu e sua carta. A Inquisição, mais uma vez, não viu nem heresia nem subversão, e arquivou a nova denúncia.
A Igreja e a Astronomia: A Igreja nunca se preocupou com a teoria de Ptolomeu ou a de Copérnico. Nenhum dos dois sistemas tinha a menor possibilidade de existência física, com aquela multidão de ciclos e epiciclos e até epiciclos sobre epiciclos. Ou seja, não era possível que um planeta girasse em torno de um ponto que, por sua vez, era um ponto que girava em torno do Sol, ou de um ponto excêntrico próximo ao Sol… Era muita acochambração, com perdão da vulgaridade. Os Sistemas de Ptolomeu e de Copérnico eram meramente instrumentos matemáticos, um modelo, para fenômenos astronômicos observados, nada mais. Não havia sobreposição, nem invasão, nem desdouro, nem contradição entre esses modelos e a Teologia. Tanto que o livro de Copérnico fora publicado havia já mais de 70 anos, e a Igreja jamais o proibiu, nem tomou nenhuma medida para proibir. Quem conseguiu, por presunção, por uma autoestima extremada, por um narcisismo astronômico, quem conseguiu misturar tudo foi Galileu. E causou uma confusão tão grande, entre Igreja e ciência, que levou 350 anos para ser mais ou menosapaziguada.
O Milagre de Josué – segundo Galileu: O final da Carta à Grã-Duquesa trata do milagre de Josué. Galileu parte de uma premissa errônea, a de que o movimento dos planetas deriva da rotação do Sol em torno de seu próprio eixo. Diz Galileu: “Assim como se o movimento do coração cessar em um animal, todos os demais movimentos de seus membros também cessam, igualmente, se a rotação do Sol cessar, a rotação de todos os planetas também cessaria.”

Era ir um pouco longe demais. Galileu, como Kepler, assumia que o movimento de translação dos planetas era devido ao Sol. Mas Galileu também atribuía ao Sol o movimento de rotação dos planetas. Assim, quando Josué ordenou “Sol, detém-te”, e o Sol parou, Galileu conclui que o Sol deixou de girar em torno de seu eixo, e, assim, a Terra também parou sua translação e sua rotação.
Ora, Galileu, que esteve muito próximo de descobrir e enunciar a Lei da Inércia, sabia melhor do que ninguém que se a Terra parasse subitamente, tudo, montanhas e cidades, muralhas e casas, mares e pedreiras, tudo, pela inércia, se desprenderia, voaria, desmoronaria. Como um cavalo veloz que pára subitamente e projeta o cavaleiro longe, com o ímpeto da velocidade. Não, cientificamente, a Terra não podia ter parado. Será que o Sol podia?
O Milagre de Josué – segundo Ptolomeu: Se o Milagre de Josué for interpretado segundo Ptolomeu, a parada súbita do Sol não faz a Terra também parar subitamente em seus movimentos de rotação e translação. A vida continuaria, apenas o dia ficando mais longo, como Josué desejava, para terminar de vencer os inimigos antes que anoitecesse. Os antigos tinham o bom senso de não lutar à noite. Para Arthur Koestler, um ateu, um ex-comunista honesto o suficiente para se render à realidade e ao raciocínio científico, o milagre seria mais credível pela teoria de Ptolomeu. Koestler ironiza que, pela teoria de Galileu, Josué teria não apenas destruído os filisteus, mas a Terra inteira.
Assim, na sua Carta à Grã-Duquesa Cristina toda a tragédia de Galileu se vislumbra: escrita brilhante, mente brilhante, uma clareza sem par na exposição das ideias, mas tudo posto em cheque por sofismas, preconceitos e alguma desonestidade.